A Terra Treme: a tragédia clássica de Luchino Visconti Odirlei Dias Pereira “O mar é amargo”. - ‘Ntoni, em A terra treme La Terra Trema: Episodio Del Mare de Luchino Visconti se inicia com badaladas de um sino enquanto vemos créditos na tela. Os personagens do filme são representados por pescadores da Sicília, que interpretam a si próprios, como podemos observar nesta primeira fala do narrador, que paulatinamente vai nos dando algumas explicações sobre o filme: Os fatos deste filme ocorrem na Itália, precisamente na Sicília, na cidade de Acitrezza perto de Catania. É a velha história da exploração do homem pelo homem. As casas, as ruas, os barcos e o povo são de Acitrezza. Todos os atores foram escolhidos no meio do povo: pescadores, lavradores, pedreiros e mercadores. Usam seu dialeto para expressar sofrimento e esperança, pois na Sicília, o italiano não é a língua falada pelos pobres. O barulho de repicar dos sinos causa o mesmo desconforto que as rodas do carro de boi no início do filme Vidas Secas de Nelson Pereira dos Santos, pois não vemos personagem algum na tela, somente o som aumentando gradualmente e a câmera parada fazendo um plano geral. Note-se que na Sicília, os pobres não falam o italiano e sim um dialeto, este fato assemelha-se ao português mal falado do nordeste brasileiro, onde se passa a saga de Fabiano e sua família e, talvez se pudesse dizer que, em ambos os filmes os personagens expressam na fala sua pobreza. Logo no início do filme, nos é demonstrado a vida dura que leva e levou toda a família Valastro: “De avô para pai e para filho sempre foi assim”, nos diz o narrador cinematográfico, que nos conta a história da partir da perspectiva de ‘NToni. A exploração dos pescadores sempre foi assim e parece nunca haver possibilidade de mudança. Os pescadores de Acitrezza vivem somente do que a natureza, no caso o mar, pode oferecer, e assim como em Vidas Secas, temos a impressão de que ambas famílias lutam contra a natureza para retirarem dela sua sobrevivência e sobreviverem sob seus mandos e desmandos. Entretanto, em um segundo momento percebemos que esta é a aparência das relações tratadas no filme, que a verdadeira submissão se dá frente aos proprietários dos meios de produção. Enquanto os homens da família Valastro vão para o mar, as mulheres Valastro se ocupam das tarefas domésticas sem nunca deixarem de se preocupar com membros masculinos da estirpe. Quando estes chegam do trabalho, as mulheres os ajudam em sua higiene pessoal bem como na tarefa de “salgar a pesca”, quando esta é farta. A situação de miséria é extrema em ambos os filmes, marcadas por momentos rápidos e passageiros de fartura. (Após chuva em Vidas Secas. Após ‘Ntoni conseguir comprar seu barco em A Terra Treme). Cansado de viver na miséria e indignado com sua situação de explorado, ‘Ntoni convence todos os membros da família a hipotecarem a casa em que vivem, único bem que passa de geração em geração na família, para poderem comprar seu próprio barco de pesca que, segundo ele, propiciaria a ascensão econômica dos Valastro, liberando-os da condição de eternos explorados pelos atacadistas/atravessadores. Convencidos que isto somente lhes trará benefícios, a família toda concorda, porém nenhum outro pescador toma a mesma decisão que os Valastro.“Mas ninguém mais o segue porque tudo dá medo quando se vive na miséria. Não se pensa que as coisas possam mudar e o pior está sempre por vir”. Neste momento da película, com a compra do barco, esta família de pescadores passam a ser os chefes, a serem os patrões de si mesmo. Isto se torna perigoso pois contesta a ordem estabelecida. Cria-se assim uma clara visão de lutas de classes entre pescadores e mercadores, sugerindo que os trabalhadores unidos possuem a força para transformar a realidade em que vivem. Com isto, a família Valastro entra num período de relativa fartura, pois a pesca é generosa e grande parte do pescado fica sobre seu controle. Mas, tal ousadia tem custos numa ordem fechada pelos atravessadores. Os Valastro precisam pagar a hipoteca e é imperativo sair para pescar ainda que o mal tempo sugira o contrário. O banco não espera e a hipoteca vencerá com borrascas ou não. Numa noite de mar revolto pressentimos a tragédia quando os sinos em sua cadência anunciam algo de inexorável: os Valastro que saíram para o mar em meio a tempestade perdem tudo o que conseguiram depois de ficarem à deriva por alguns dias, até que serem encontrados por outros pescadores e rebocados para a praia. Em terra firme são recepcionados de forma hostil pelos mercadores que acusam ‘Ntoni de ter causado com sua rebeldia a rebeldia do mar. “–
Você provocou este desastre!” A partir do momento em que ‘Ntoni entra em decadência econômica, o narrador cinematográfico passa a mostrá-lo de cima para baixo, denotando inferioridade e incapacidade, e os mercadores de baixo para cima, denotando assim superioridade e poder, deslindando a relação de dominação dos proprietários dos barcos junto aos pescadores, mostrando a verdadeira relação de submissão a que os Valastro estão enredados. Está é a verdadeira submissão e não a aparente submissão às intempéries do mar, como podemos imaginar. Os Valastro são punidos aparentemente pelo destino, pela natureza e, com isto fica exemplificado a que condição fora deixado quem ousou sair ou lutar contra o status quo. Ao acentuar a miséria da família, ‘Ntoni vende os barris de peixe conseguidos na época de fartura, pois “quando a fome aperta acabamos fazendo qualquer coisa. Cedemos, somos espoliados. Com o tempo faço um buraco em você, disse o verme à pedra”, conclui o narrador, justificando o motivo pelo qual os 30 barris de peixe salgado são vendidos bem abaixo do preço de mercado, fato que ocorre mesmo sob a indignação de toda a família Valastro. Apesar da condição de despossuído, Lucia irmã de ‘Ntoni, momentaneamente não aceita a corte feita a ela por Salvatore – o delegado da cidade – mas a partir de deste momento ela passa a vislumbrar a possibilidade de possuir coisas “lindas” como a ècharpe que ele oferecia quando a cortejava: “Gosto de ècharpes de seda, de brincos e colares”. Diz ainda que será rica um dia para ter esses bens, uma vez que “isto não era coisa para pobre”, interligando diretamente as classes sociais aos bens que elas consomem numa gradativa escala social. Esta passagem recorda Sinha Vitória sonhando com o dia em que teria a cama de couro, como a do seu Tomás da Bolandeira, que a faria sentir-se gente. A decadência financeira da família Valastro é desencadeadora de sua decadência moral. Além de terem perdido seus instrumentos de trabalho, a família fica endividada, com o banco. Assim, o amor que Nedda parecia sentir por ‘Ntoni se vai juntamente com a vida melhor que ele não poderá mais lhe oferecer. Lucia cede e se entrega ao Sr. Salvatore em troca de alguns “presentes” e ‘Ntoni, sem conseguir trabalho, encontra na “vadiagem” alento momentâneo para suas dores. Neste ínterim, há na cidade uma festa comemorativa de inauguração de dez novos barcos de pesca, que segundo seus proprietários darão trabalho a mais 10 tripulações. Elogiando os cidadãos de Acitrezza, estes proprietários afirmam que estes novos barcos só trarão benefícios à cidade, uma vez que, segundo eles “todos trabalhamos bem”, claro, com exceção daqueles que decidem trabalhar por conta própria, quem “não batem bem da cabeça”. Todo o discurso é interrompido por aplausos da população. Disto em diante, toda a cidade passa a condenar moralmente a família Valastro, que antes era exaltada. “Deus vai puní-lo pela arrogância! É a pior família de ‘Trezza”. Com a execução da hipoteca da casa, a pobreza da família Valastro se acentua o que os obriga a desfazerem de seus bens pessoais e a procurar trabalho junto aos antigos patrões, que os aceitam de volta, sob escárnio e zombarias. “ ‘Ntoni! Aquele que queria afundar todos com ele! Vê que suas idéias não funcionam?” Ao assinar os papéis de sua recontratação, sequer lhe informam quanto receberá por seu préstimo; ‘Ntoni nada pergunta. Assim como em Vidas Secas, em A Terra Treme, o jugo da opressão também é cíclico. Fabiano retira-se da fazenda em que vive em busca de um outro futuro sonhado. Da mesma maneira, ‘Ntoni Valastro regressa ao mar sob a opressão dos mercadores, fazendo uma melancólica menção ao início da película em que o narrador nos diz “Assim recomeçam os Valastro de volta ao mar. Porque o mar é amargo, e é no mar que morre o pescador”. A tragédia clássica de Luchino Visconti, assim como a de Vidas Secas, onde o destino parece orquestrado fora do alcance dos indivíduos, é a mesma: é a tragédia do homem pobre sem nada de seu, livre e não organizado num mundo onde o capital se organiza associando-se à formas tradicionais de dominação e mando. Os Valastro são vítimas da tormenta assim como a família de Fabiano é vítima da seca, a natureza parece inclemente com aqueles que ainda não encontraram formas de dominá-la, meios de domá-la ou precaver-se dos seus caprichos. Os fornecedores não colocam os barcos no mar de Aci Trezza num dia de tempestade porque possuem reservas e suas famílias não passariam fome. Mas, não seria assim para as famílias de pescadores que vivem da mão para boca tal qual a família de Fabiano. |