Portugal e o Mediterrâneo:
uma peregrinação artística de Manoel
de Oliveira em busca das raízes comuns Aniello Angelo Avella[1] Os
poentes de Lisboa sabem a Ocidente há
neles um barco antigo a partir para o
reino ausente. [.......] Os
poentes de Lisboa intensamente são o
Ocidente. Manuel Alegre, Poentes de Lisboa 1. Manoel de Oliveira, o Mestre português condecorado com o título de Cavalheiro da Gran Croce da Ordem ao mérito da República Italiana e universalmente reconhecido como um dos máximos representantes da arte cinematográfica, da qual é um dos pais fundadores, construiu com o seu Filme Falado (2003) um exemplo paradigmático dos vínculos ancestrais entre a cultura portuguesa e o Mediterrâneo. Como escreve Bernardo Bertolucci a propósito do grande cineasta, a sua “atlântica alegria de viver” vem de longe e vai mais longe ainda, “de oeste a leste” (Buisel, 2002), do Oceano até o “Mar Interior” e mais além. Neste filme, uma jovem professora de história da Universidade de Lisboa, acompanhada de sua filha, uma criança curiosíssima, embarca em uma viagem marítima com a intenção de chegar até a Índia, a mesma que representara durante o Renascimento o sonho dourado dos navegadores portugueses e de toda a Europa. Naquela época, cujo retrato histórico e literário assumiu quase sempre a marca grandiloqüente da epopéia, a navegação seguia por rotas oceânicas. Na viagem narrativa de Manoel de Oliveira, ao contrário, o percurso se desenvolve, por etapas, entre alguns dos principais portos do Mediterrâneo realizando, à maneira de Borges, uma espécie de inversão ideal da perspectiva na qual passado e presente podem ser vistos como projeções do futuro. A narração fílmica da viagem é rica em símbolos que aproximam mito e história, realidade e imaginação. O “sentimento” da descoberta é recriado através das histórias dos personagens que, na multiplicidade das suas experiências, escrevem um coletivo e imaginário diário de bordo, carregado de alusões, ecos e pressentimentos do encontro com o inesperado, com o desconhecido, no desejo de realizar a passagem em direção Alhures. Estruturado segundo uma tripartição dialética (a viagem didática pelas cidades mediterrâneas, a conversação noturna junto à mesa do comandante, o inesperado final trágico), o Filme Falado representa um tipo de processo hegeliano de tese-antítese-síntese, como foi observado também por Marco Luceri no seu artigo Parole, parole, parole (www.drammaturgia.it, 3 setembro de 2003). O elemento dominante é a palavra. As línguas faladas pelos protagonistas (português, francês, italiano, grego, inglês) são assumidas como fundamento da civilização ocidental desde as origens: a palavra é o pressuposto da unidade étnica e cultural dos povos europeus, juntamente com a extraordinária contribuição da civilização árabe. A expressão “cinema de palavra”, usada por André Téchiné a propósito de Godard nos Cahiers du Cinéma (n. 189, abril de 1967), foi retomada por João Bérnard da Costa na sua discussão sobre o filme Acto da Primavera, realizado por Manoel de Oliveira em 1963. Este intelectual, presidente da “Cinemateca Portuguesa”, chegou a reconhecer naquele filme uma antecipação das teorias de Pasolini sobre o “cinema-poesia”: o diretor viria a ser “produtor de efeitos cênicos” e a imagem seria colocada como “pré-texto do texto que se faz ver, da palavra alcançada” (Seabra, 1988: 82). Em outros termos, junto aos sons e às cores, as palavras produzem aquela magia através da qual o pensamento é transmitido e representado em modo abstrato e visivo ao mesmo tempo. 2. O altíssimo valor da palavra, entendida quase como Verbo, é um dos fundamentos da poética de Manoel de Oliveira. Desse modo exprime a “religiosidade” do seu cinema que através da re-criação artística do real profanado pela violência do olhar (neste caso mediante o olho da câmera), tende à reconstituição e restituição da imagem do sagrado, no sentido atribuído por Roger Caillois a este termo. Moralidade e ironia, por sua vez, reclamam o grande paradigma de Antônio Vieira, em quem o diretor se inspirou em diversas ocasiões, brincando, como fazia o orador barroco nos seus sermões, entre os pólos de ilusão e realidade, de utopia e desencanto. No Filme Falado, o espírito de Vieira manifesta-se de forma evidente. O jantar, junto à mesa do comandante, onde cada um fala sua própria língua e todos se compreendem, pode ser visto como a transposição cinematográfica do sermão no qual o “imperador da língua portuguesa” (assim reza a célebre definição de Fernando Pessoa) recorda que o Espírito Santo fez entrar as línguas nas cabeças dos Apóstolos para diplomá-los como “doutores do mundo”. Interseções lingüísticas, confluências, dissonâncias e semelhanças realizam o sonho do encontro entre os diversos: o navio é terra de ninguém onde todos são estrangeiros e iguais nas suas diferenças. Ainda na esteira de Antônio Vieira, Manoel de Oliveira nos oferece uma extraordinária lição de mentalidade “intercultural” (Clanet, 1993). Assumindo o universo do Mediterrâneo nas suas articulações étnicas, religiosas, lingüísticas como um “objeto-sistema” (Morin, 1993), exalta o seu enorme potencial de valores humanísticos nos processos de reciprocidade e interação que desde sempre o caracterizaram, inclusive em relação à outros “sistemas” com os quais foi posto em contato através da história passada e presente. Neste contexto, a palavra se relaciona naturalmente com a utopia, como recita o título de um outro filme de Manoel de Oliveira: Palavra e Utopia (2000), não por acaso centrado na obra de Vieira, reconstituída através dos seus sermões, livros e cartas. Desenvolvendo a estrutura narrativa a partir da relação entre elementos místicos e políticos, o diretor fundamenta a sua re-criação artística exclusivamente sobre o texto, usando a palavra para reconstituir e restituir a imagem “sacra” da realidade submetida à “profanação” da história. O dualismo, talvez irremediável, entre ilusão e mundo real, evidenciado pelo diretor português na figura de Antônio Vieira, faz pensar ao oximoro observado por Claudio Magris no seu célebre livro, como “uma contradição que o intelecto não pode resolver e que só a poesia pode exprimir e sustentar” (Magris, 1999: 13). Durante a “última ceia” do Filme Falado, que antecede a inesperada conclusão, o termo utopia se coloca no centro do jogo verbal encadeado pelos protagonistas. A canção interpretada pela atriz grega na sua própria língua traduz em música o sonho de um lugar paradisíaco onde tudo é paz e o homem vive sereno no seu Eden. Logo na seqüência ocorre a brusca reviravolta: o Paraíso se despedaça no Apocalipse da explosão e do fogo. Sabemos
quanta importância Manoel de Oliveira sempre atribuiu à música como
modulação da expressão verbal. Já em 1988,
na apresentação do seu longa-metragem Os
Canibais, disse: “A palavra,
mesmo que seja só declamada, é já de si musical. A palavra cantada é
apenas o acentuar desse seu lado forte e potencial... Assim o teatro, a
ópera e o cinema são afins e vão de mão dada com a palavra que lhes
é comum” (1988: 117). Não parece arbitrário, a esta altura, recordar as reflexões sobre a relação entre música e utopia no interior do sistema de pensamento de inspiração marxista de Ernst Bloch (1918 e 1954-1959) e, por outro lado, recordar a relação de “afinidade” e “contiguidade” entre música e mito, observada por Claude Lévi-Strauss (1978). 3. A utopia desencantada de Manoel de Oliveira, como diria Claudio Magris, revela a natureza dialética e dualista da sua criação artística. Neste sentido, pode-se entender melhor inclusive a herança de latinidade desse verdadeiro monumento que é a sua obra, e o celebrado “Troféu Latino” que lhe foi concedido pela União Latina no ano de 2002. As repetidas citações virgilianas disseminadas no Filme Falado induzem a algumas reflexões sobre a mitologia subliminar à narração. Neste caso, o Ulisses mítico, fundador de Lisboa, faz a viagem de volta em direção ao oriente e parece cruzar com as peripécias de Enéas, que navega em direção ao Lácio. Se recoloca, portanto, a velha questão da diferença entre Latinos e Gregos quanto a forma de pensar: estes últimos, tal como reza o conhecido lugar comum, pensariam “miticamente”, enquanto aqueles pensariam “praticamente”. Sabe-se que estudos recentes colocaram em discussão este estereótipo ressaltando a complexidade do mundo espiritual dos Latinos e as suas conexões com as avançadíssimas culturas do Egeu. Teria havido, inclusive, na proto-história uma espécie de “ensaio” da civilização mediterrânea “da qual os vestígios provenientes do Egeu e encontrados até no Lácio constituem o testemunho tangível, ainda que não a única essência” (Carandini, 1997: 249). Os conceitos de tempo e de espaço obedeciam, na mentalidade dos Latinos, a uma lógica ambígua, elíptica, cíclica, segundo a qual início e fim são coincidentes. Na coincidentia oppositorum e no princípio de não-contradição, da qual a divindade de Jano Bifronte é a representação primária, o retorno de Ulisses evocado pelo filme Manoel de Oliveira constitui a passagem através da mítica porta bifronte: uma versão renovada, portanto, do seu filme Viagem ao Princípio do Mundo (1997). Mares e rios, feitos da substância primordial que no ciclo natural da transformação realiza o eterno retorno, são os elementos indiferenciados do mito fundador da civilização latina. “Amar o mar é amar a alma de todos esses e outros rios que desaguam nos oceanos as alegrias e as mágoas dos povos que banham”, escreveu o Mestre português num texto dedicado à sua cidade, Porto, e ao seu rio, o Douro, acrescentando que as águas escorrem “pelo tempo, por córregos, por leitos e pelos espaços históricos desses povos de diferentes raças, hábitos e costumes, não obstante unidos pela mesmíssima raiz humana que os liga, que nos liga e nos iguala a todos nós”(de Oliveira, 1999: 53). A passagem do rio para o mar, travessia alegórica da porta de Jano, é –na experiência artística e intelectual do português Manoel de Oliveira – algo parecido ao trânsito aquerôntico de um outro importante navegador da literatura e do pensamento europeu (ou seja, Claudio Magris, já citado neste texto), que parte do universo aquático e cultural da Europa Central e do Danúbio para depois conduzir-se até o mar aberto com seu Ulisses de Itaca e altrove (1982), e ainda mais longe com Un altro mare (1991). As águas do intelectual torinês de nascimento e triestino por adoção são povoadas por irresistíveis sereias lusitanas. O pescador/Ulisses de Il Conde (1993) segue sua ingrata tarefa de recolher os corpos dos afogados exatamente nos rios Douro e Tâmega, para extrair, a partir desta experiência, estímulo para reflexões e digressões sobre todos os tipos de fronteira da cultura ocidental. A “marginalidade” vista a partir da perspectiva de um Magris ou de um Manoel de Oliveira estilhaça os velhos conceitos de “centro e periferia”. Tempo e espaço se libertam da rigidez do contínuo irreversível e se reapropriam da riqueza ambígua que liga origem e fim. A
última página de Danubio
(1990), na qual é descrito o desembocar deste rio no Mar Negro, se abre
com uma metáfora cinematográfica (“Após três mil quilômetros de
filme, levanta-se e, por um momento, sai da sala”) e se conclui com
uma citação em dialeto de um poeta “marginal” de Grado, Biagio
Marin: “Mas o canal escorre suave, tranqüilo e seguro no mar, não é
mais canal, limite, Regulation,
e sim fluir que se abre e se abandona às águas e aos oceanos de todo o
globo e às criaturas das suas profundezas. Faça com que a minha morte,
Senhor – diz um verso de Marin – seja como o escorrer de um rio
neste mar grande”. A última imagem do Filme Falado corresponde, segundo a lógica dos opostos, ao incipit[2]: a manhã enevoada quando o navio deixa o porto de Lisboa e a professora conta para a filha a história e o mito de Dom Sebastião, do “Quinto Império”. Talvez o jovem rei, “Desejado”, “Encoberto”, esteja morto de fato e para sempre, como parece dizer Manoel de Oliveira, que já filmou este argumento, baseado em uma peça de José Régio, em O Quinto Império, Ontem como Hoje. Ou então aquelas chamas, aquela explosão estrondosa poderiam ser um forte apelo, ditado pelo trágico momento histórico em que vivemos, à necessidade de calar os clamores, os gritos, a prevaricação, e de refletir escutando a voz do mar para reapropriarmo-nos da capacidade de falar e, na frutífera dialética do diálogo, voltar a conceber novas “utopias desencantadas”. BIBLIOGRAFIA AULETTA, Giosuè. Lazio Latino. La Terra Santa della Latinità, Rotary International, Rotary Club Pomezia Lavinium (ed.), 2001 Buisel, Júlia.
Manoel de Oliveira – Fotobiografia, Lisboa, Figueirinhas, 2002 BERNARD DA COSTA, João. “Nuovo Cinema Portoghese: Rivolta o Rivoluzione?”, in Seabra, Augusto M. (ed.), Portogallo: "Cinema Novo" e Oltre, Venezia, Marsilio, pp. 51-119 [79], 1988 CLANET, Claude. L’Interculturelle-Introduction
aux approches interculturelles en Éducation et en Sciences Humaines,
Toulouse, Presses Universitaires du Mirail, 1993 MORIN, Edgard. Terre-Patrie (trad. it. Terra-patria, Milano 1994). MAGRIS,
Claudio. Utopia e disincanto. Storie speranze illusioni del moderno,
Milano,Garzanti, 1999. OLIVEIRA, Manoel de. Alguns
projectos não realizados e outros textos, Lisboa, Cinemateca
Portuguesa, 1988 ______________ “Rios da Terra, Rios da Nossa Aldeia”, Sincronie, III, 6, giugno-dicembre (trad. it., “Fiumi della terra, fiumi del nostro villaggio”, in Avella, A.A., ed., Parola Immagine Utopia. Scritti in onore di Manoel de Oliveira, L’Aquila-Roma, Japadre, 2002, p. 21). BLOCH, Ernst. Geist
der Utopie (trad. it., Lo
Spirito dell’utopia, Firenze 1980). _____________ Das
Prinzip Hoffnung (trad. it., Il
principio speranza, Milano 1994). LÉVI-STRAUSS, Claude. Myth
and Meaning (trad.it.,
Mito e significato, Milano, il
Saggiatore, 2002). CARANDINI, A. La nascita di Roma. Dei, Lari, eroi ed uomini all’Alba di una civiltà. Torino, Einaudi, 1997
[1] Professor da Universidade de Roma “Tor Vergata”. Tradução de Célia Tolentino, revisão do autor. [2] Em latim no original: início, começo |