A canção brasileira em busca de utopias

Érica Ribeiro Magi

Depois que o crítico José Ramos Tinhorão proclamou o fim da canção[1] dizendo que “(...) hoje é tudo coletivo, com recursos eletro-eletrônicos. Acabou essa canção que nasce contemporânea do individualismo burguês, feita para você cantar e outras pessoas ouvirem se sentindo representadas na letra (...)”, escrever um ensaio que se propõe a analisar o discurso social em canções contemporâneas tornou-se um desafio maior. Será que elas não nos dizem mais nada?

Deixando o purismo de lado, nos propomos a analisar comparativamente três canções lançadas nos últimos anos. Nestas, o Sol como metáfora oferece a pista da busca de seus narradores – contrariando Tinhorão – por alguma saída justamente contra o individualismo burguês, aqui tematizado na forma de angústia, de ausência de novas utopias e até num determinado conformismo social.

            Se atualmente agrega-se cada vez mais recursos eletrônicos às canções, não significa que elas não sejam produzidas imanentemente à sociedade, ao contrário, como nos diz Roberto Schwarz (2001), os trabalhos artísticos registram de algum modo o processo social a que devem a sua existência. Todo artista e sua obra se colocam no mundo a partir de um tempo e contexto social determinados. Para Norbert Elias (1995), analisar a conexão entre as obras produzidas pelo artista e sua sociedade pode ajudar a produzir um conhecimento que não se limita à música, ou mesmo à arte, mas sobretudo sobre nós mesmos.

            Para pensar-nos nos últimos anos, nos propomos a analisar as seguintes canções: Alagados, composta pela banda Paralamas do Sucesso (Bi Ribeiro, Herbert Vianna e João Barone), lançada no disco Selvagem? em 1986; Quando o Sol bater na janela do teu quarto, da banda Legião Urbana (Renato Russo, Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá) do disco As Quatro Estações, de 1989, e finalmente Lugar ao Sol, lançada no disco 100% Charlie Brown Jr. - Abalando a sua Fábrica, de 2001, cuja autoria é da antiga formação do grupo Charlie Brown Jr (Chorão, Marcão, Pelado e Champignon).

 O sol como metáfora

             A canção Alagados tem como cenário principal a cidade do Rio de Janeiro e em primeiro plano a vida dos moradores da favela. Segundo o narrador, os indivíduos iniciam o dia desafiados pelo Sol que lhes mostra as agruras da realidade dos que vivem nesta cidade “que tem braços abertos”. Permeia a letra um diálogo entre o sonho, inspirado pela beleza natural da cidade, e o contraste com a vida que se leva:

Todo dia
O sol da manhã vem e lhes desafia
Traz do sonho pro mundo quem já não queria
Palafitas, trapiches, farrapos
Filhos da mesma agonia

E a cidade
Que tem braços abertos num cartão-postal
Com os punhos fechados da vida real
Lhes nega oportunidades
Mostra a face dura do mal

             Como a música é uma mistura entre rock e reggae, aspecto estético que tornou os Paralamas do Sucesso originais no âmbito do rock and roll brasileiro dos anos 80, o Rio de Janeiro é posto ao lado da Jamaica, isto é, além de unidos pelos ritmos musicais, unem-se também pela dramática situação social, a “mesma agonia”, de seus filhos. Trenchtown (Kingston Ocidental) é uma cidade pobre da Jamaica que recebeu este nome porque foi construída em cima de um fosso por onde escoava o esgoto da velha Kingston. Foi onde Bob Marley cresceu e tornou-se músico. Ao lado de Trenchtown ficaria, na letra dos Paralamas do Sucesso, a Favela da Maré, na capital carioca.

            O mar que banha a cidade maravilhosa e a ilha de Bob Marley é o mesmo que não desperta esperança nas palafitas e barracos mas que dá alegria aos turistas e belas imagens aos cartões-postais. O Sol para os indivíduos moradores das ‘periferias litorâneas’ é quem ilumina suas dificuldades a cada amanhecer. Segundo o narrador, estas pessoas insistem em levar as suas vidas movidos por unicamente por uma fé:

Alagados, Trenchtown, Favela da Maré
A esperança não vem do mar
Nem das antenas de tevê
A arte é de viver da fé
Só não se sabe fé em quê

       Ao observar que as vidas dos absolutamente pobres se move pela fé, o narrador sugere que estes não parecem ser os sujeitos que irão produzir um futuro melhor, ou seja, não se trata de uma fé no futuro desta gente como atores de alguma mudança, tal como se acreditava nos anos 60 e 70. Naqueles anos, como analisa Marcelo Ridente (2000), o romantismo revolucionário estava presente nas letras das canções mostrando que para os compositores da música popular brasileira, e também para uma parcela da sociedade, o migrante recém chegado à cidade e o camponês concretizariam uma possível transformação social. Em tempos de indústria cultural, de consumo acelerado – as antenas de tevê e do turismo – não parece haver muita esperança no front.

            É importante salientar que o narrador em Alagados é um indivíduo de fora da realidade da favela ou, como dizem os rappers cariocas, é um sujeito do “asfalto”. Quando diz que é preciso ser artista para viver da fé, está fazendo uma crítica ao revelar nas entrelinhas que viver da fé é viver da espera por algo desconhecido, mas que possivelmente será bom. Em contraposição a esse indivíduo pobre dos anos 80 que tem fé, o narrador mostra a sua própria descrença e desencanto com relação ao presente, já que no último verso fala a partir de si mesmo: “Só não se sabe fé em quê”. Esta desesperança é a mais presente na sociedade brasileira da segunda metade da década de 80: vai da família às instituições políticas.

      Já em Quando o Sol Bater na Janela do teu Quarto, a angústia vivida na realidade é escondida por um arranjo musical envolvente, ao som de violões e teclados tocados suave e tranqüilamente sem pressa alguma. O tom que predomina na música é otimista, com alguns momentos de dor e sofrimento quando o ritmo torna-se intenso e rápido. Mas logo em seguida a calmaria retorna, porque a esperança num novo dia está em nós mesmos, para então a canção terminar.

Quando o sol bater na janela do teu quarto
Lembra e vê que o caminho é um só

 Por que esperar se podemos começar tudo de novo 
Agora mesmo 

A humanidade é desumana
Mas ainda temos chance
O Sol nasce pra todos 
Só não sabe quem não quer

O Sol simboliza a esperança, ao contrário em Alagados, onde evidencia as desigualdades em meio a beleza da cidade. Aqui o Sol lembra a cada amanhecer que o dia pode ser realmente novo.

Comparar a letra e a sonoridade nos sugere um elemento social ambíguo. O narrador sugere que poderíamos ter realizado alguma coisa, porém não conseguimos e, em conseqüência, tudo o que estamos vivendo hoje é dor. Ao contrário da letra, a sonoridade é quem expressa o otimismo, a calmaria que este sujeito que fala parece querer alcançar. As palavras não se tematizam esta angústia, cabe ao som e a forma de cantar – esta sim, pouco otimista - transformar um sentimento social em matéria artística. Talvez pudéssemos dizer que uma melodia suave fora o único recurso encontrado pela banda em fins dos anos 80, após esperanças e expectativas terem se transformado em desencanto, para revelar a tese de que o futuro é incerto e pouco alentador.

Em Alagados não existe referências sociais concretas que apontem para uma mudança, o indivíduo está tão somente alimentado pela abstração da fé. Porém, na canção do Legião Urbana, a cada fracasso vivido no passado, canta-se em seguida vagarosamente o refrão: “Quando o sol bater na janela do teu quarto/ Lembra e vê que o caminho é um só”, como uma referência a um presente que também olha para o futuro:

Até bem pouco tempo atrás
Poderíamos mudar o mundo 
Quem roubou nossa coragem?
Tudo é dor
E toda dor vem do desejo
de não sentirmos dor

Quando o sol bater na janela do teu quarto
Lembra e vê que o caminho é um só

Possivelmente essa coragem viria da liberdade que se generalizava através da abertura política, do fim da censura e do sentimento comum entre as bandas nacionais de serem capazes de produzirem sua própria música independentemente de saberem ou não tocar uma guitarra.[2] . Agora estavam perplexos diante da impotência social, o presente não mais lhes possibilitava esperanças concretas além de suaves acordes ao violão. A utopia coletiva tinha malogrado e sobrava o indivíduo e os seus desejos, sobretudo aquele de não sentir dor – a própria ou a do outro. Que roubou nossa utopia, poderia dizer o narrador em lugar de coragem. A coragem para a luta parecia perder o endereço naquele ano de 1989, quando a banda lança o disco.

O narrador não oferece, ou melhor, desconhece o caminho mas indica a partir da rima entre sol e que tanto o sol quanto o caminho são apenas um. É só o que parece restar: uma conversa entre homem e natureza.

Já na canção do grupo Charlie Brown Jr, Lugar ao Sol, ocorre esse diálogo entre homem e natureza, no entanto em outra perspectiva, o que torna a canção interessante para compreendermos, pelo menos um pouco, que tipo e quais questões estão se colocando após explosão do rock brasileiro nos anos 80 e na sociedade brasileira dos anos 90. Para o poeta desta década, a angústia está na dificuldade de conquistar o seu próprio espaço e no risco de permanecer socialmente determinado. Não se trata de uma angústia, entretanto, por reconhecer que, nesta realidade, ao mesmo tempo em que se cobra a conquista do “lugar ao sol”, não se oferece possibilidades reais para se chegar lá. Cabe apenas ao indivíduo, sozinho, fazer a sua história, trilhar o seu caminho e, se preciso, separar-se do outro pois, desta vida “realmente não dá pra fugir”. Contudo, ele não se sente impotente diante da vida em razão da liberdade adquirida na ausência do outro:

Um dia eu espero te reencontrar numa bem melhor
Cada um tem seu caminho, eu sei foi até melhor
Irmãos do mesmo Cristo, eu quero e não desisto

[...]

Livre pra poder sorrir, sim
Livre pra poder buscar o meu lugar ao sol

          Com uma fé endereçada, o sujeito da canção não se vê sozinho, porque Cristo estaria com ele: “O amor é assim, é a paz de Deus em sua casa. O amor é assim, é a paz de Deus... que nunca acaba.” Voltamos à mesma questão vista em Alagados, a fé é imprescindível para continuar levando a mesma vida e sonhar com algo distinto do que está posto. São em momentos de abstração (sonho, fé) geralmente no espaço privado que o indivíduo se desembaraça da realidade concreta e de suas relações sociais estabelecidas:

Caro pai, como é bom ter por quê se orgulhar
A vida pode passar, não estou sozinho
Eu sei se eu tiver fé eu volto até a sonhar

                Ainda permanece a dúvida: qual o lugar do outro nessa história? Durante a letra o narrador julga-se livre para então buscar seu “lugar ao sol”, apenas sabemos do outro no momento da separação e também por meio da melodia ao acompanha a firmeza do narrador em defender sua “liberdade”. O outro entra em cena quando o narrador percebe que eles são iguais – levam a mesma vida, têm as mesmas angústias, inseguranças e sonhos. Assim podem caminhar juntos – para onde não se sabe:

Nossas vidas, nossos sonhos têm o mesmo valor
Nossas vidas, nossos sonhos têm o mesmo valor

Eu vou com você pra onde você for

Eu descobri que é azul a cor da parede da casa de Deus
E não há mais ninguém como você e eu

        São evidentes as semelhanças colocadas pelas canções no que diz respeito ao diálogo entre nossos narradores sociais com as metáforas construídas pelo Sol. De iluminador da dura vida real, passando a oferecer esperança mesmo que o momento seja de dor e terminando como o lugar do sucesso – socialmente determinado, mostrando um conformismo – trata-se de um discurso em busca do imponderável: a felicidade, o sucesso, o bem estar. Em meio às distintas faces assumidas pelo Sol, a questão colocada é a necessidade do sujeito em se encontrar no mundo, saber claramente o que está vivendo e porque está sofrendo. Embora haja algumas diferenças entre os narradores, nos dois últimos, o presente e o futuro são pensados fazendo recorrência à natureza, buscando respostas e um pouco de utopia para continuar levando a vida, ou, viver a que se tem apesar da solidão de cada um.

                A partir dessas canções tentou-se mostrar, como demonstram as questões tratadas acima, que a música popular, desde a canção regional até a chamada música ‘eletrificada’, continua “a ser uma arena privilegiada para se observar os nossos diferentes jogadores em ação”, como nos diz Hermano Vianna (1998).

Bibliografia

ABRAMO, Helena Wendel. Cenas Juvenis: punks e darks no espetáculo urbano. 1a edição, São Paulo: Scritta, 1994.

ELIAS, Norbert. Mozart. Sociologia de um Gênio. Tradução Sérgio Goes de Paula, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.

RIDENTI, Marcelo. Em Busca do Povo Brasileiro. São Paulo: Record, 2000.

SCHWARZ, Roberto. Cultura e Política. São Paulo: Paz e Terra, 2001.

VIANNA, Hermano. Musica en plural: nuevas identidades brasileñas. In Revista de Cultura Brasileña, editada pela Embaixada do Brasil na Espanha, número 01, março de 1998.

 

Paralamas do Sucesso – Alagados (1986)

Todo dia
O sol da manhã vem e lhes desafia
Traz do sonho pro mundo quem já não queria
Palafitas, trapiches, farrapos
Filhos da mesma agonia

 E a cidade
Que tem braços abertos num cartão-postal
Com os punhos fechados da vida real
Lhes nega oportunidades
Mostra a face dura do mal

 

Alagados, Trenchtown, Favela da Maré
A esperança não vem do mar
Nem das antenas de tevê
A arte é de viver da fé
Só não se sabe fé em quê

 

 Legião Urbana - Quando o Sol Bater na Janela do teu Quarto  (1989)

Quando o sol bater na janela do teu quarto
Lembra e vê que o caminho é um só.

Por que esperar se podemos começar tudo de novo
Agora mesmo

A humanidade é desumana
Mas ainda temos chance
O Sol nasce pra todos
Só não sabe quem não quer

Quando o sol bater na janela do teu quarto
Lembra e vê que o caminho é um só

Até bem pouco tempo atrás
Poderíamos mudar o mundo
Quem roubou nossa coragem?

Tudo é dor
E toda dor vem do desejo
de não sentirmos dor

Quando o sol bater na janela do teu quarto
Lembra e vê que o caminho é um só

 

Charlie Brown Jr - Lugar Ao Sol (2001)

Que bom viver, como é bom sonhar
E o que ficou pra trás passou e eu não me importei
Foi até melhor, tive que pensar em algo novo que fizesse
sentido

Ainda vejo o mundo com olhos de criança
Que só quer brincar e não tanta "responsa"
Mas a vida cobra sério e realmente não dá pra fugir

Livre pra poder sorrir, sim
Livre pra poder buscar o meu lugar ao sol

Livre pra poder sorrir, sim
Livre pra poder buscar o meu lugar ao sol

 Um dia eu espero te reencontrar numa bem melhor
Cada um tem seu caminho, eu sei foi até melhor
Irmãos do mesmo Cristo, eu quero e não desisto

Caro pai, como é bom ter por quê se orgulhar
A vida pode passar, não estou sozinho
Eu sei se eu tiver fé eu volto até a sonhar

Livre pra poder sorrir, sim
Livre pra poder buscar o meu lugar ao sol 

Livre pra poder sorrir, sim
Livre pra poder buscar o meu lugar ao sol

O amor é assim, é a paz de Deus em sua casa
O amor é assim, é a paz de Deus que nunca acaba

O amor é assim, é a paz de Deus em sua casa
O amor é assim, é a paz de Deus... que nunca acaba

Nossas vidas, nossos sonhos têm o mesmo valor
Nossas vidas, nossos sonhos têm o mesmo valor

Eu vou com você pra onde você for
Eu descobri que é azul a cor da parede da casa de Deus
E não há mais ninguém como você e eu

[1] Em 29 de Agosto de 2004, Caderno Mais, Folha de São Paulo. p. 06
[2] A atitude dessa geração de bandas teve origem no lema punk-rock, “faça você mesmo”, que foi analisado minuciosamente  através do rock paulista por Helena Abramo em Cenas Juvenis: punks e darks no espetáculo urbano

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