A cultura popular no cinema, na literatura e na música:
a caricatura, o riso e a sátira social
Fátima Cabral
(Organizadora)
O texto que segue é a transcrição literal de um encontro realizado na
Faculdade de Filosofia e Ciências da UNESP, campus de Marília, no dia
19 de maio de 2005, encontro esse organizado por mim, Fátima Cabral, e
Maria Valéria Barbosa, ambas do Departamento de Sociologia e
Antropologia. Apenas para efeito de melhor situar os membros da mesa
para leitores que não participaram do evento, ao preparar o texto para
a publicação no site eu acrescentei informações na apresentação,
mas no restante preservei as falas e o debate na íntegra, bem como o
tom coloquial predominante, com o intuito de ressaltar o clima de
descontração e de animação de que se revestiu o encontro. Agradeço
ao Grupo de Estudos Literatura e Cinema pelo apoio na divulgação do
evento e em particular pela oportunidade de publicação deste texto
A idéia central desta mesa, longamente intitulada de A cultura popular no cinema, na literatura e na música: a caricatura, o
riso e a sátira social, é a de discutir o mundo rural, o mundo
caipira, em três dimensões da nossa expressão e produção cultural:
na literatura, no cinema e na música. É também a oportunidade, para
mim, de um feliz reencontro, porque tenho ao meu lado uma pessoa que não
via há muito tempo. Do meu outro lado está uma pessoa com a qual eu
convivo quase que diariamente, e na ponta uma pessoa que eu conheci faz
pouco tempo, mas que tem se fortalecido como amiga e parceira de
trabalho. Logo vocês entenderão melhor.
A Sylvia Helena Telarolli de Almeida Leite é professora de
Literatura Portuguesa da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp do
campus de Araraquara. Eu a conheço há bastante tempo, porque fui aluna
do pai dela, o saudoso Rodolpho Telarolli, professor de História na
UNESP de Araraquara. Embora ele tenha começado a carreira aqui em Marília
– portanto a Sylvia também morou em Marília um tempo –, logo ele
se transferiu para Araraquara. Eu convivi muito com a Sylvia e com sua
irmã Teresa, que fez Ciências Sociais na mesma época que eu – década
de 80 –, pois freqüentei bastante a casa do professor Rodolpho, nas
altas rodadas de cerveja e de churrasco; era muito bom ir para lá, eu
tenho inúmeras e agradáveis lembranças. É muito bom reencontrar a
Sylvia nesse momento, e já agradeço o fato de ela prontamente ter
aceitado esse convite, o que sinaliza, de antemão, que teremos uma
discussão bastante interessante aqui.
Para quem quiser se aprofundar no aspecto mais literário do nosso tema, a
Sylvia tem um livro bastante interessante, publicado pela Editora da
UNESP – Chapéus de Palha, Panamás,
Plumas, Cartolas. A caricatura na literatura paulista (1900-1920).
De uma maneira bastante interessante e finamente articulada, a Sylvia
analisa diversas caricaturas na literatura de escritores paulistas entre
o período de 1900 a 1920, produção essa definida como pré-modernista.
Nesse sentido, o livro oferece um leque de personagens representativos
do homem do campo e do emigrante, entre outros, capaz de nos revelar
aspectos singulares das idéias e dos problemas que surgiam naquele período,
mas que ainda hoje reverberam no imaginário e na própria condição
social em nosso país.
Temos esse livro aqui na Biblioteca, mas vocês podem aproveitar a promoção
da Editora – 30% de
descontos em todos os livros editados pela Unesp – e comprar o livro
dela e o da Célia, sobre o qual vou
falar daqui a pouco. Com esse desconto, mais o autógrafo das duas, os
livros sairão bem baratos, realmente.
Depois de a Sylvia contextualizar esse nosso tema na literatura,
a Célia Tolentino vai falar sobre essa mesma questão no cinema.
Professora aqui da casa, todos vocês conhecem, ela tem um livro que se
chama O Rural no Cinema Brasileiro,
publicado pela Editora da UNESP em 2001. Nesse livro a Célia não
apenas tenta apreender a leitura do narrador cinematográfico sobre o
rural, com o intuito de interpretar o caráter da nossa brasilidade; ela
também compõe uma narrativa que representa sua própria visão de
mundo sobre esse país que sofre ainda hoje com sua crise de identidade,
um país que por não conseguir realizar, na prática, "o melhor da
modernidade", compensa, no imaginário sobre o rural, a necessidade
de se "recuperar alguma rebeldia coletivista, em oposição à violência
e solidão que a modernidade brasileira acabou construindo". (p.
310)
Por fim terá a palavra Cris Aflalo, cantora, compositora,
produtora, que eu conheci faz muito pouco tempo, por conta de um acervo
sobre o qual se vai falar aqui. Parte significativa desse acervo veio ao
conhecimento público através do CD Só Xerêm que ela lançou em dezembro de 2003, com 13 músicas do
avô, e que já no início de 2004 foi indicado ao Prêmio
Tim em duas categorias: como melhor cantora na categoria regional e
na categoria voto popular. Mesmo sem instrumentos, só com o recurso da
voz – o que não é pouca coisa – ela vai mostrar um pouco desse
trabalho aqui para nós.
Bom, eu conheci esse trabalho através do Programa Ensaio, na TV Cultura,
gostei muito, comprei o CD e logo entrei em contato com a Cris, porque
no encarte do CD ela diz ter um material inédito do avô, através do
qual é possível se resgatar não só a história e o legado de Xerêm,
mas particularidades da história do rádio e da imprensa no Brasil.
Isso despertou minha curiosidade, e meu interesse sobre a produção e o
trabalho artístico no Brasil se fortaleceu a partir do momento em que
tive contato com o tal baú de Xerêm. Esse rico e diversificado
material de primeira mão, isto é, organizado pelo próprio Xerêm, além
do contato com a Cris, que me permite conhecer sua visão peculiar sobre
o rural e sobre a cultura musical nacional, me instigaram para a realização
desta mesa, idéia dividida, prontamente aceita, encorajada e encampada
pela professora Valéria (Maria Valéria Barbosa). Devo dizer, portanto,
que a professora Valéria é também responsável por esse encontro aqui
hoje, tendo colaborado muito em todos os detalhes.
Agradeço então à professora Valéria, à professora Sylvia e também à
professora Célia, sempre disponível a somar e a debater questões
relevantes para nossa formação, e particularmente a Cris Aflalo, que
igualmente aceitou o desafio para participar desta mesa trazendo um
depoimento artístico-pessoal sobre o tema da cultura popular. Enquanto
as duas outras expositoras abordarão o tema de uma maneira um pouco
mais teórica e acadêmica, a Cris vai falar sobre sua experiência e
seu encontro com a obra de Xerêm, seu avô, esse multiartista que
deixou uma notável contribuição à história cultural deste país. Nós
teremos aqui também a oportunidade de ouvir o som original de Xerêm.
Antes de iniciarmos devo agradecer ainda ao Departamento de Sociologia e
Antropologia, Departamento de Ciências Políticas e Econômicas,
Conselho de Curso de Ciências Sociais, PET – Programa Especial de
Treinamento em Ciências Sociais e UNATI – Universidade da Terceira
Idade, que contribuíram com verba para que pudéssemos realizar esta
atividade.
Passo agora a palavra à Sylvia, agradecendo, mais uma vez, a participação
das nossas três convidadas e do público aqui presente.
Sylvia:
Agradeço muitíssimo o convite para esta mesa, o que me dá
oportunidade de voltar a Marília depois de tantos e tantos anos. Eu
morei aqui mas já faz muito tempo. Mas apesar das boas lembranças que
a Fátima tem, ela foi um pouco desleal – comigo e com a Célia –
porque ela montou uma mesa assim: de um lado estão os acadêmicos,
que falam de arte mas não são artistas, e de outro a artista, que veio
trazer toda sua produção e experiência para a gente. Então eu vou
cumprir a parte que me foi encomendada, e como a gente tem um tempo para
respeitar, eu trouxe o texto escrito, vou lendo devagar, vou parando
conforme for necessário, senão a tendência é a gente dispersar e
acabar não cumprindo o que foi prometido para falar.
Eu vou me basear, para desenvolver minha fala, em alguns
elementos que estão nesse livro que eu publiquei já faz algum tempo,
em 1996, e que é o meu doutorado. Foi defendido em 1992 e publicado em
1996. Então ele não está tão atualizado, não é uma coisa do
momento, mas acho que tem elementos que podem ser interessantes e
colaborar na reflexão sobre essa questão da cultura popular, que é o
tema da mesa. Eu dividi minha discussão em três momentos: primeiro eu
falo mais teoricamente sobre o riso, a sátira, a caricatura; depois eu
falo um pouco da imagem do caipira na literatura pré-modernista, e
finalizo citando dois autores na literatura que trabalharam com a figura
do caipira: Monteiro Lobato, com o Jeca Tatu, e Cornélio Pires, que era
tio de um parceiro de Xerêm, o Ariovaldo Pires, ou Capitão Furtado,
como ficou mais conhecido. Mas sobre isso acredito que a Cris vai falar
depois. Isso posto, começo a exposição.
Imagens
do caipira no pré-modernismo, entre o resgate e a desmistificação
Sylvia Helena Telarolli de Almeida Leite
O riso, o cômico, manifesta-se nas mais distintas formas de
expressão artística: literatura, teatro, mímica, pintura, cinema etc.
A mim cabe falar especialmente do riso na literatura, lembrando que o
riso comporta variadas e distintas nuances, que vão desde o cômico
mais ingênuo, despretensioso, quase cordial, até a desmistificação e
a crítica da sátira,
passando pelo humor, a ironia, o chiste.
Na tipologia do cômico encontramos a nuance satírica, mais
incisiva, frontal, eventualmente panfletária. A sátira é, como define
Frye, (1973) “ironia militante”, exigindo certa dose de
agressividade e fantasia, um conteúdo reconhecido como grotesco, uma
norma infringida e que se quer reafirmar. O riso do satirista é de
todos o menos solidário, é o riso de zombaria, de rejeição. Das
formas cômicas, essa é a que mais radicalmente pratica a insígnia do
cômico “ridendo castigat mores” pois ri castigando os
costumes, é o riso como
punição.
A sátira pode expressar um ponto de vista conservador, assim como pode
expressar uma visão mais progressista, originar-se tanto de “um
moralismo acre e sardônico” quanto pode expressar uma “crítica lúcida
e desesperada”; pode resultar
de um ataque pessoal ou assumir caráter mais genérico, abarcando uma
crítica que tem caráter coletivo, de ressonância política, social;
de toda forma expressará sempre a
“idéia do presente recusado” (BOSI, 1977).
O engenho é recurso indispensável ao satirista, que
joga com as idéias e as palavras, tendo como técnicas
preferenciais a redução, o rebaixamento, para despojar o criticado de
suas características pessoais e de classe, desferindo um
golpe mortal contra “a crença de que somos únicos, livres em
nossas obras” (HODGART, 1969, p.120), desrespeitando qualquer forma de
privacidade, autoridade e hierarquia.
Para a depreciação, o satirista vale-se de comparações (com o reino
animal, vegetal, dos objetos), metáforas, de antíteses e paradoxos,
hipérboles. A
caricatura e a paródia são também recursos caros à sátira, forma híbrida
na sua essência, camaleônica por necessidade, mesmo que não sejam
instrumentos exclusivos desta; o nivelamento cômico ou grotesco também
é freqüente no discurso satírico, seja elevando o ínfimo ou vulgar
ou rebaixando o elevado ou sublime. De toda maneira a sátira implica
sempre, em algum momento, a dimensão de mundo às avessas, a percepção
do mundo transtornado.
A sátira associa-se,
portanto, ao riso de rejeição, de zombaria, de derrisão.O riso
rebaixador é o riso da sátira, mesmo que nem toda sátira seja
necessariamente cômica, pois o universo satírico aborda também o horrível
, as deformidades que causam dor e sofrimento.
A caricatura, tema desta mesa, é recurso freqüentemente utilizado na sátira;
embora não tenha ela sempre obrigatoriamente
função satírica, pois é possível encontrarmos caricaturas de efeito
mais cordial, ameno. O caricaturista faz um perfil de poucas linhas,
empreendendo a deformação deliberada do original caricaturado, com
propósitos jocosos; a caricatura, portanto, parte de um desvio, que
desnuda a insuficiência, desconstruindo a imagem do caricaturado ao
mesmo tempo que reconstrói um outro, revelador das incongruências do
original; por isso é reprodução negativa , às avessas. É como se o
caricaturista usasse lentes de aumento, ampliando traços do
caricaturado até chegar à
deformação.O caricaturista capta o desequilíbrio, a desarmonia
presentes na imagem do caricaturado, amplia os traços desarmoniosos até
deformá-los. Na criação caricaturesca é cômico o que há de revelação;
é a insurreição daquilo que de algum modo se disfarçava e, à
revelia da “vítima”, torna-se explícito, evidente. A caricatura é
um eficiente instrumento depreciativo, pois deixa uma marca funda como
uma cicatriz , que pode ser eventualmente atenuada, mas jamais era
esquecida; toda vez que o caricaturado for mirado por alguém que conheça
a caricatura dele feita, a imagem caricaturesca se sobreporá à sua
imagem real.
Colocadas essas questões preliminares, passaremos agora a falar de uma
figura que foi muito caricaturada na literatura, no cinema, no teatro,
em “charges”etc: o caipira.
O caipira é habitante típico do interior do estado de São Paulo e das
zonas limítrofes com o estado de Minas Gerais, Mato Grosso, Paraná .
É um tipo que vai se
definindo desde o século XVIII, após os ciclos bandeirantes e que traz
características culturais muito específicas, apoiadas nos “mínimos
vitais”, isto é , as atividades são poucas e precárias, voltadas
apenas à sobrevivência, à subsistência dos indivíduos, à coesão
dos bairros. (CANDIDO, 1977, p.79) Trata-se de uma população em geral
mestiça, especialmente de branco com índio, dispersa, nômade por
necessidade, pois vive à mercê da
mobilidade exigida pela posse irregular da terra e não tem por hábito
o trabalho regular.
É, portanto, uma cultura avessa à mudança, pois “não foi
feita para o progresso: a sua mudança é o seu fim, porque está
baseada em tipos tão precários de ajustamento ecológico e social, que
a alteração destes provoca a derrocada das formas de cultura por eles
condicionada”( CANDIDO, 1977, p. 82).
É uma cultura rústica, marcada pela pobreza, apoiada em condições
materiais muito precárias, pautada na violência. Com o tempo, no século
XIX, a cultura caipira vai sofrendo alterações, provocadas pelo
contato com o escravo negro e depois, mais no fim do século XIX e inícios
do XX, pelo contato com o imigrante, especialmente o italiano, que vem
substituir a mão-de-obra escrava nas lavouras de café.
Também a marcha da urbanização do estado de São Paulo,
associada à industrialização e à abertura de mercados, propiciando a
penetração, no espaço rural, de bens de consumo praticamente
desconhecidos, expressam uma aproximação com as cidades,
que destrói a autonomia que caracterizava a cultura caipira,
antes centrada na vida do bairro rural , baseada em uma economia
particular, de subsistência. (CANDIDO, 1977, p.165) Cria-se ,assim, uma
economia dependente, que exige certa margem de lucro para as compras, não
podendo o caipira como antes viver apenas da troca informal, o que
pressupõe um trabalho mais constante e regular. Assim, novos traços vão
definindo o perfil do caipira, impresso agora
pela mudança, registrando um universo em extinção.
Existiu em São Paulo, especialmente no período compreendido
entre 1890 e 1930 uma produção artística (literária, musical,
pictural) que tematizava o caipira, retratando-o muitas vezes com
relativa fidelidade, conservando os traços básicos de sua cultura e
manifestando ora um sentimento de aproximação, de compreensão às
vezes autêntica, ora um olhar mais distanciado, filtrado pela veia satírica
ou pela idealização, distintas faces da mesma moeda; a visão do outro
como inferior, porque diferente.
Em geral essa representação do universo caipira será feita por
citadinos, portadores de uma certa cultura que, mesmo quando solidários
a esse “outro” diferenciado, são com freqüência pouco
conhecedores daquilo que tratam. José Paulo Paes, ao comentar certos
programas mais recentes de música sertaneja, identifica uma
“falsidade de raiz” no gênero, pois trata-se de uma “arte
supostamente rural, de idealização da vida rural, feita para
gente não mais rural”. É uma produção que, embora tenha por tema a
vida rural (o sobre), não é feita por roceiros (o pelo), nem se dirige
preferencialmente para eles (o para) (PAES, 1985, p.252). Avaliação
semelhante pode-se fazer dessa produção artística que tematiza o
caipira, em sua maioria alimentada por uma veia pitoresca.
Esse caipirismo em sua maior parte tem feição bastante
conservadora, oscilando entre a estética realista - que apresenta o
homem sob uma ótica determinista e busca a veracidade documental, a
reprodução mimética do homem e da natureza - e alguns excessos românticos,
idealizadores.
Em comum esses textos têm, cada qual à sua maneira, o compromisso com a
fixação de aspectos de uma cultura em extinção ou em franca
transformação, que deveriam ser registrados para não se perderem no
esquecimento.
É compreensível, portanto, essa oscilação entre o documento, o
saudosismo, a idealização e o pitoresco, que atravessa esses textos,
faces distintas de uma mesma atitude, a busca do registro como forma de
resgate de uma cultura que começava a desbotar, esvaindo-se nas rápidas
mudanças trazidas pela virada do século.
No que diz respeito à definição de imagens do caipira, dois
autores são especialmente expressivos, por fixarem perfis marcados por
traços distintos: Monteiro Lobato e Cornélio Pires.
Monteiro Lobato é o criador do Jeca Tatu (1914), certamente a
mais popular imagem do caipira. De feição caricaturesca, o Jeca cumpre
uma função satírica, vinculada ao riso de zombaria e exclusão
(PROPP, 1992). Recurso básico para encetar a depreciação proposta é
o rebaixamento, através de aproximações e comparações:
Jeca-sarcoptes mutans (piolho da terra), Jeca-porrigo decalvans
(parasita do couro cabeludo), Jeca-sapé. Também sofre o caipira de
Lobato um processo de
reificação, evidente, por exemplo, na aproximação agregado-arapuca:
“É de vê-lo surgir a um sítio novo para nele armar a sua arapuca de
agregado”. (LOBATO,s.d.,p.141)
A hipérbole é o traço mais evidente na construção
dessa caricatura, ampliando
alguns de seus traços mais característicos, especialmente a preguiça,
a inércia:
“O caboclo é uma quantidade negativa. Tala cincoenta alqueires
de terra para extrair o com que passar fome e frio durante o ano.
Calcula as sementeiras pelo máximo da sua resistência às privações
.Nem mais, nem menos. [...] assim fez o pai, o avô; assim fará a prole
empanzinada que naquele momento brinca nua no terreiro.” (LOBATO,
s.d. p. 144)
A caricatura também explora o comportamento predatório do
caipira com relação à natureza, como bem demonstra o trecho a seguir:
“Barreada a casa, pendurado o santo, está lavrada a sentença de
morte daquela paragem.” (Idem Ibidem, p.142). Todos os traços do Jeca
reiteram, enfim, a definição da cultura caipira a partir dos “mínimos
vitais”, exigindo apenas a produção do necessário à sobrevivência:
“Da terra só quer a mandioca, o milho e a cana” (p. 150); “[...]
Sua casa de sapé e lama faz sorrir aos bichos que moram em toca e
gargalhar ao joão-de-barro.” (p.148)
Traços caricaturescos e depreciativos, semelhantes aos que
constituem o Jeca Tatu, apresentado nas crônicas “Velha praga” e
“Urupês”, estarão presentes nas personagens caipiras que aparecem
nos contos de Monteiro Lobato. João Nunes, em “Vingança da
peroba”, enfatiza o caipira como “quantidade negativa”: é preguiçoso,
avesso ao trabalho, alcoólatra, violento, tem relação predatória com
a natureza. A superstição, a crendice, a covardia, definem “Pedro
Pichorra”, que se apavora com uma porunga colocada com água à beira
do rio para refrescar durante a noite, confundindo-a com um saci-pererê.
Monteiro Lobato mostra também o caipira contador de “causos”
fantasiosos (“Resto de onça”), a caipira que é uma versão às
avessas da caipirinha idealizada na ficção regional: Das Dores é
muito feia e, na mesma proporção de sua vasta cabeleira tem curta
inteligência (“Cabelos compridos”), a doença, especialmente o
amarelão, tão comum nos caboclos do interior: Urunduva, em “Bucólica”,
é definido como uma “maleita ambulante”.
Os traços dominantes nas personagens caipiras do autor de Urupês,
como se vê, são sempre tendentes à crítica, à depreciação, à
desmistificação, seja por meio do riso ameno ou satírico ou mesmo da
dramática situação de perda e abandono, como em “Vingança da
peroba” ou “Bocatorta”.
Essa literatura produzida em São Paulo sobre o caipira, traz
características comuns às encontradas na produção de
autores que trataram de outras regiões do Brasil, isto é,
oscila entre o registro documental e a idealização, entre o ornamento
e a anedota, manifestações distintas, mas motivadas por uma causa
comum, a discriminação do diferente, responsável pela apresentação
pouco convincente de aspectos locais, estigmatizados em marcas
distintivas das peculiaridades regionais-nacionais, a serem contrapostos
à ficção “urbana”, mais homogeneizadora.
Esse regionalismo parte do contraste entre campo e cidade,
sobrelevando-se o primeiro como espaço de reencontro homem-natureza,
forma de resgate de uma integridade perdida. Com raras exceções,
trata-se de literatura sobre o campo, feita na cidade, por e para
citadinos, em que se registra o diferente como anômalo, distintas máscaras
de uma mesma atitude, a alteridade.
Contrapondo-se à perspectiva mistificadora encontra-se a imagem
do caipira fixada por Monteiro Lobato em crônicas e contos, que, se por
um lado, traz muito de impiedade, por outro tem também muito de revelação,
procurando registrar um caipira que escapasse à idealização
dominante, assim como à anedota pitoresca, mesmo que para tanto seja
necessária a opção da sátira:
Porque
a verdade núa manda dizer que entre as raças de variado matiz,
formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e o
aborígene de tabuinha no beiço, uma existe a vegetar de cocoras,
incapaz de evolução, impenetrável ao progresso. Feia e sorna, nada a
põe de pé.
[...]
Nada
o esperta. Nenhuma ferrotoada o põe de pé. Social, como
individualmente, em todos os atos da vida, Jéca, antes de agir,
acocora-se”. (LOBATO, p. 146-7)
O trecho acima mostra bem como a sátira de Lobato coloca-se a
serviço do desvelamento crítico no momento mesmo em que o caipira se
tornava o “Ai Jesus” nacional, em substituição ao índio,
mistificado no Romantismo.
Lobato se indignava com a mistificação que cercava a figura do
caipira, apresentado ora pela lente do pitoresco, ora como personagem de
anedotas. E chega mesmo a nomear autores que, segundo a sua visão,
contribuíam para a fixação dessa imagem distorcida do caipira, entre
eles Cornélio Pires.
Cornélio Pires (1884-1854) tem uma vasta produção, entre
poemas, contos e “causos”, tematizando aspectos da vida do caipira,
além de ter colaborado com constância na imprensa, mantendo coluna no
“O Pirralho”e n´”O comércio de São Paulo”. Cornélio Pires não
teve acesso a uma escolarização mais regular, tendo completado apenas
as primeiras letras; talvez por isso não tenha sido muito bem aceito
pela crítica, mas foi muito popular junto ao público, empatia reforçada
pelas outras atividades culturais a que se dedicou (espetáculos, gravação
de discos etc). O seu perfil, ,mais do que o de um acadêmico, um
intelectual é o de um ativista cultural. (“não escrevo para
letrados, num país de iletrados”)
Cornélio dedicou-se com empenho e sensibilidade ao conhecimento
do universo caipira, em longas permanências no interior do estado de São
Paulo, especialmente nas proximidades
de sua terra de origem, Tietê, na região sul do estado, zona
velha e tradicional, quando observava e registrava hábitos, costumes,
crenças, lendas e a linguagem do interiorano, por isso é comum que
aspectos de contos e ensaios do escritor constem de estudos
desenvolvidos por folcloristas e estudiosos do caipira.
A visão de mundo expressa por Cornélio abriga, contudo , posições
discrepantes: se pode ser lida como o registro amoroso e até ingênuo
que divulga aos citadinos facetas da vida ignorada do desconhecido homem
do interior, ou como o contraponto- especialmente nos estudinhos
reunidos em “O caipira como ele é”- à ácida crítica desenvolvida
por Lobato ao caipira, também pode ser interpretada como abordagem
mistificadora do caipira, quando há um tratamento em que predomina um gênero
de estilização oscilante entre o anedótico e o exótico, a idealização
e o pitoresco.
A concepção de personagens de Cornélio é marcada pela
estilização; é difícil detectar em que medida a estilização
de personagens, especialmente quando registra
diferenças sociais ou étnicas, é o ponto de partida de estereótipos,
ou em que proporção já é resultante de estereótipos disseminados
anteriormente à produção dos textos; ou seja, é complexo saber em
que medida a caricatura cria clichês e quando apenas registra, amplia e
propaga imagens já anteriormente disseminadas.É o que se vê, por
exemplo, com a figura de Joaquim Bentinho, o queima-campo, muito popular
à época de sua produção.
As duas formas de composição de imagens acima comentadas, mesmo
ao evidenciar distintas opções no tratamento do diferente, podem ser
lidas como faces complementares no traçado de um perfil do caipira, que
pelos dois caminhos se apresenta de modo convincente, seja quando
nivelado pelo que tem de comum com os outros homens ou como vítima
degradada cujas misérias denunciam o processo de marginalização dos
despossuídos em um Brasil que se urbaniza e industrializa, alijando os
segmentos vinculados ao
universo agrário, avessos à mudança.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CANDIDO, A . Os parceiros do Rio Bonito. 4.ed. São Paulo: Duas Cidades, 1977.
LEITE, S.H.T. de A .
Chapéus de palha, panamás,
plumas, cartolas: a caricatura na literatura paulista (1900-1920). São
Paulo: EDUNESP, 1996.
LOBATO, M. Cidades mortas. São Paulo: Brasiliense, 1959 (Obras Completas de
Monteiro Lobato, v.2)
___________. Negrinha. São Paulo: Brasiliense, 1959 (Obras Completas de Monteiro
Lobato, v.3)
___________.
Urupês. São Paulo:
Brasiliense, 1959(Obras Completas de Monteiro Lobato, v.1)
PIRES,C. Conversas ao pé do fogo. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado . ,
1987.
_______. Cenas e paisagens da minha terra. São Paulo : Edição da Revista
do Brasil, Monteiro Lobato & Cia. , 1921.
A nossa
modernidade insegura: o caipira no Cinema
Célia Tolentino
Quero agradecer o convite para estar nesta mesa, é um grande prazer
conhecer a professora Sylvia Telarolli, que eu já conhecia quando fiz o
meu trabalho de doutorado, que é sobre o rural no cinema brasileiro; o
texto da professora me foi apresentado pela Fátima, gentilmente. E é
um prazer também porque aqui a gente tem o futuro, isto é, o trabalho
já feito e quem está vindo nos trazer questões, noções e provocações
sobre a questão do rural, do caipira, da figura do pobre do campo e,
mais especificamente, do homem pobre e criativo do campo. O que eu acho
é que a concorrência é desleal: falar onde tem alguém que canta é a
coisa mais complicada desse mundo, evidentemente. Sobretudo eu, que sou
da casa, que falo quase todo dia, então eu vou meio que “chover no
molhado”, pra usar já uma expressão matuta, já fazendo uma
homenagem aqui aos caipiras. E quero fazer uma heresia pública, e dizer
que finalmente minha amiga Fátima vai ao encontro da sua verdadeira
vocação; ela é a pessoa que eu conheço que mais entende de música e
que mais gosta de música; finalmente ela se coloca a estudar ou se
aproximar da música, “larga” aquele ciberespaço, que, apesar de
moderníssimo, é hiper-árido. Eu estou muito feliz porque eu acho que
vem por aí uma coisa muito interessante, com certeza. Esse evento já
é o resultado dessa coisa interessante. Quantos eventos sobre
ciber-jogos você organizou? Ela mal acabou de começar a trabalhar com
a questão da música está organizando esse evento super simpático,
cuja concorrência nós não estamos à altura. Mas, enfim... a gente
faz o que pode: quem sabe canta, quem não sabe fala...
Bom, quanto à caricatura no cinema, eu obviamente vou falar
daquela feita por Mazzaropi, a partir do Monteiro Lobato. Mazzaropi vai
consagrar no cinema o Jeca Tatu, que eu chamo personagem-tipo, baseado
nos textos de Monteiro Lobato, nos artigos Velha
Praga e Urupês, escritos em 1914 e 1918. É justamente nestes artigos que
ele se inspira para fazer o homem pobre rural no cinema e transmiti-lo
para a população que está saindo do campo e indo para as cidades,
lotando as salas de projeção nos finais das décadas de 1950 e início
da década de 1960. E, nesses filmes que lotam os cinemas encontramos
aquela leitura sobre o homem pobre rural que, à primeira vista, parece
simpática porque faz o público rir e, ao mesmo tempo, olhar com certa
pena para aquela caricatura que é desenhada. Mas esse cinema não
resiste a uma segunda olhada a partir da qual se pode fazer uma crítica
bastante pesada, observando que Mazzaropi, quando desenha o homem pobre
rural, está menos rendendo a tão propagada homenagem ao caipira e mais
fazendo jus ao período de 50 e 60, quando o Brasil pretende superar a
sua condição de país agrário e passar a ser uma hegemonia
industrial. Portanto e para tanto, era muito interessante naquele
momento desenhar o homem pobre do campo como um sujeito atrasado,
inoportuno, inoportuno inclusive para a modernização, um sujeito que
precisava ser superado. É esse o desenho que encontramos na figura do
Jeca Tatu de Lobato, é esse desenho que a gente encontra nesse
personagem, feito por Mazzaropi. A Cris me perguntava, “mas por que
faz tanto sucesso e por que faz as pessoas rirem?”
Eu entendo que o próprio desenho feito por Mazzaropi tem como
base aquilo que eu chamo no meu trabalho de “a modernidade
insegura”, ou seja, o país, fazendo essa transição, precisava
escolher um tipo que fosse muito diferente daquele que falasse. Isso a
professora Sylvia também colocou: aquele que fala do caipira não se
identifica com ele, aquele que fala do caipira quer desenhá-lo de
maneira muito distinta, ele não pode ser parecido com o vizinho, não
pode ser parecido com seu parente, não pode ser parecido com seu irmão,
ele tem que ser um sujeito muito diferente daquele que está nas
periferias das cidades grandes, tanto os vindos do interior de São
Paulo quanto do interior de Minas Gerais e que vão construir a cidade
grande. Então é nesse sentido que a gente observa na caricatura feita
por Mazzaropi, o exagero e a construção de um tipo que não se parece
com ninguém, a ponto de se tornar quase um xingamento. Recentemente o
ex presidente Fernando Henrique Cardoso comentava que o brasileiro era
caipira e isso criou uma grande polêmica, as pessoas, como notificou a
imprensa à época, se sentiram profundamente ofendidas. Quer dizer, se
caipira fosse uma identidade boa, ninguém se ofenderia por ter sido
chamado de caipira justamente pelo presidente da República. Mas, quando
o presidente, que tem fama de ser um homem internacional,
internacionalista, enfim, um homem culto, à la francesa, chama os
outros de caipira, ele está apontando esta face depreciativa da
identidade caipira: ninguém deseja sê-lo. E vale lembrar ainda que o
caipira desenhado por Mazzaropi é completamente oposto ao caipira
desenhado por Antônio Candido: ele é mal educado, maltrata sua mulher
publicamente, cospe no chão, faz cara de idiota, e se faz de sonso
quando é preciso tirar alguma vantagem da situação, exatamente como
faria a figura consagrada do malando urbano. Então, de certa maneira,
Mazzaropi atribui a esse homem rural todas as qualidades negativas para
a sociedade que começa a se urbanizar e a se industrializar. Era
preciso abandonar aquele modo de ser para fazer jus ao tempo da
modernização e da sociedade urbana.
E, nesse sentido, podemos observar, por exemplo, que o Jeca é um tipo que
não sabe consumir. No filme Jeca Tatu, de 1959, Jeca compra uma
fazenda, um pedaço de tecido, para fazer um terno com o qual deverá
visitar um deputado em São Paulo. Já na capital, ele apanha uma chuva
e a roupa encolhe pela metade, tornando-o ainda mais ridículo: ele fica
com as canelas de fora, o paletó fica com meia manga e até o pano do
guarda chuva encolhe pela metade. Isso faz rir mas eu pergunto, de quê?
A questão de fundo seria o fato de que o caipira é incapaz de
reconhecer e distinguir, no nosso capitalismo ainda arremedado, o bom
tecido do mal tecido; só o homem urbano seria capaz de fazê-lo, porque
integrado às regras (ou trapaças) do mercado. Com pouco dinheiro (a
cidade prometia muito mais para o operário do que o campo para o
trabalhador rural), o caipira só poderia comprar a fazenda ruim e, como
conseqüência, se deixava enganar pelo nosso capitalismo periférico.
Observe-se que o consumidor é que precisava ser esperto para este
mercado de fraudadores, até porque, na época não existia o direito do
consumidor. Se existisse, a piada não seria possível, evidentemente.
Mas é nesse capitalismo arremedado dos anos 60, no auge do
desenvolvimentismo e do desejo de integrar-se de vez ao mundo urbano e
industrial, que se desenha este homem como completamente diferente
daquilo que ele é. Porque se o cinema se aproximasse um pouco do homem
rural de fato, ele começaria a desenhar as pessoas comuns, as pessoas
que estão nas cidades, as pessoas que acabaram de chegar. Poder-se-ia
perguntar: por que estas pessoas lotam os cinemas para ver os filmes de
Mazzaropi? Minha resposta é: porque as pessoas vão lá e não se
enxergam no Jeca Tatu desenhado por ele. E riem daquela figura que não
a representa e não representa ninguém que se conhece: aquele homem
pobre rural talvez pertença ao seu passado, àquilo que a pessoa que
está na cidade grande deixou no campo e que é preciso superar.
Portanto, é fundamentalmente uma caricatura depreciativa.
Mas podemos lembrar de dizer que o cinema, desta mesma época, tem outras
aproximações do caipira. Existe um outro trabalho, que eu chamo de o
verdadeiro cinema caipira, feito em Araraquara, que é o filme o Santo Antonio e a Vaca e que muda completamente o foco. Nesse filme,
o cineasta não desautoriza as crenças, aquilo que o caipira acredita e
a sua visão de mundo. O filme conta uma estória bem simplesinha,
evidentemente, mas que tem como foco o fato de Santo Antonio descer à
terra para ajudar a uma família de pequenos proprietários rurais que
está em dificuldades. Mas como uma das pessoas da família é bastante
preguiçosa, Santo Antonio tenta tirar a vaca que lhes dá leite para
fazer com que essa família se dedique ao trabalho. Mas não é que a
família seja preguiçosa por ser caipira: um dos membros da família não
trabalha porque sonha em encontrar um tesouro nas terras do sítio, e
passa o dia cavando para encontrá-lo; o outro está apaixonado,
portanto não trabalha também; a outra se acha solteirona e sonha em
arrumar um marido e não tem ânimo para trabalhar, mas nenhum deles é
tratado como preguiçoso crônico, ou como mal intencionado. Eles têm
razões pessoais e particulares para não trabalhar naquele momento,
digamos que não é uma coisa inerente ao caipira. Aquelas pessoas,
naquele momento, estão vivendo outras preocupações e deixando o “sítio
no mato”. Os vizinhos, desenhados nos mesmos moldes, estão sempre
trabalhando, mas não são muito mais
ricos por isso, não são fazendeiros, são caipiras, pequenos
proprietários como eles. E nesse desenho Santo Antonio fala com São
Pedro numa linguagem acaipirada: “é Tonico, acho bom você descer lá
pra resolver as coisas”. E Santo Antonio vem, faz morrer a vaca que dá
leite e a família tem que se dedicar ao trabalho para poder comer e se
sustentar. A moral da estória é que “os santos escrevem certo por
linhas tortas”. Ou seja, não se desautoriza a forma popular de
pensar, não desautoriza o jogo do pensamento coletivo, não coloca isso
como ridículo. Enquanto que se nós formos observar em Mazzaropi, tudo
aquilo que as pessoas, que o público rural, os habitantes do meio rural
acreditam, é colocado como ridículo, como coisa a ser superada. E é
nesse sentido que eu me coloco contra a maior parte da crítica
cinematográfica brasileira que vê Mazzaropi como o maior transmissor
da herança caipira, tal como livro de Glauco Barsalini (Mazzaropi,
o jeca do Brasil) que afirma isso. Segundo meu ponto de vista, o
autor se equivoca quando coloca o Mazzaropi como aquele que traz a herança
do homem rural para as telas. Eu acho que o Mazzaropi é aquele que traz
a idéia preconceituosa do urbano sobre o homem pobre rural, trazendo
para as cidades a idéia de que no campo estaria aquilo que o Brasil
urbano não precisa; no campo está aquilo e aquele que nós não
queremos carregar para a nossa modernidade; que nós não queremos
carregar como parte da nossa cultura e da nossa história: no máximo,
será parte do nosso folclore, das festas juninas quando o desenhamos
todo roto e remendado. Nesse sentido é curioso que hoje, retomando essa
questão, nós podemos ver que quem se intitula de caipira é justamente
quem nada tem de caipira, justamente as pessoas que estão se
comportando como se viessem ou estivesses em Dallas,
nos EUA. São mais representantes do rural norteamericano do que do
rural brasileiro, entendendo que aquele rural é “chic”, portanto,
é o rural que nega o rural.
Temos um cinema que tratou isso de maneira interessante, além de Santo
Antonio e a Vaca, que foi feito em 1959, que é o mais recente Marvada
Carne. Esse filme, embora também traga um narrador urbano, ou recém
urbanizado, o próprio caipira conta a estória pregressa. Ao contá-la
ele vai dizendo: “olha como a gente vivia, naqueles tempos a gente se
contentava com pouco, naqueles tempos a gente vivia desta maneira...”
. É também um narrador que não desautoriza nem mesmo as estórias
fantásticas do caipira que ele foi. Ele nos conta que certa feita,
andando pelos matos, encontrou o curupira que lhe pediu fumo, caso contrário,
lhe arrancaria o coração. Ele tenta argumentar que não tem fumo mas o
bicho não faz acordo. Sem saída, recorre a um golpe de esperteza,
dizendo ao curupira que o fumo está na espingarda: “eu tenho aqui um
fuminho mas ele é meio mequetrefe”. Põe o cano da espingarda na boca
do curupira e dá um tiro. O bicho não morre mas fica satisfeito: “é,
é meio mequetrefe, mas ta bom, ta bom...” Esses são os tipos de
“causos” caipiras que estão dentro do filme Marvada
Carne compondo até a forma da narrativa. E, não só não são
desautorizados como em nenhum momento é tomado como coisa para o
espectador rir. Quer dizer, você ri com o caipira, da estória contada,
porque ele enganou o curupira, mas não porque ele é um ignorante que
acredita no curupira, não porque ele é um ignorante que acredita numa
coisa que não existe. Essa é a diferença fundamental entre aquilo que
eu chamo de “caricatura amorosa”, ou da “aproximação amorosa”,
que a Sylvia Telarolli deu outros nomes interessantes, como sátira
receptiva, acolhedora, o riso acolhedor. Esse é o riso acolhedor, a
gente ri quando ele conta que alguém estava cortando o mato e cortou o
nariz do compadre, depois colou o nariz – explicando-nos que carne
quente “pega” – só que colou o nariz no avesso, ao contrário, e
toda vez que o compadre espirrava o chapéu subia... Mas a gente não ri
porque a gente acredita ou não nisso, a gente ri porque a estória em
si é engraçada e ali é contada como verdade. É um filme baseado em
Cornélio Pires – a Fátima está aqui me cantando esta informação
– e também nos Parceiros do Rio
Bonito, quando dá idéia de que o prêmio maior para uma população
que passa fome é um farto banquete. E se chama Marvada
Carne porque ele faz um
acordo com a moça, de que no dia em que ele se casasse com ela ele
comeria a marvada carne de boi que ele nunca tinha experimentado. E nem
disso a gente ri, não porque ele acreditou na estória da moça, a
gente ri porque o pacto de casar com alguém para comer carne de boi é,
em si, engraçado. Mas não é porque ele é caipira que ele está
fazendo isso, é um modo de ser interesseiro e ingênuo ao mesmo tempo.
Mas em nenhum momento a gente recusa aquela identidade. A identidade do
Nhô Quim, desse sujeito do Marvada
Carne é uma identidade “amorosa”, enquanto a identidade do Jeca
Tatu é uma identidade pejorativa, tanto que ainda hoje, se a gente
chamasse as pessoas de Jeca Tatu a gente estaria evidentemente dizendo
que era uma pessoa cafona, de maus modos, fora da modernidade, enfim,
chamar alguém de Jeca é, pelo menos, dizer que ele está fora de moda.
Então, é nesse sentido que o cinema tratou o rural, fazendo aqui uma
comparação bem rápida e veloz, porque acho que todo mundo quer ouvir
o que eu também quero ouvir... Recomendo
o filme Santo Antonio e a
Vaca, que é belíssimo, é um poema, apesar da precariedade, o Jeca Tatu eu também recomendo, porque é o tipo de filme que você
precisar ver para saber o que eles falaram da gente, quando eu falo da
gente eu me coloco na posição de quem foi ao cinema e não gostou do
que falaram de mim mesma, e Marvada
Carne, que eu chamo de “caricatura amorosa” a respeito do
caipira, aquele que não desautoriza nem destrata, mas que traz aquilo
como parte da nossa memória, como parte da nossa história, como parte
integrante da nossa cultura. Era isso.
A
brasilidade poética de Xerêm
Cris
Aflalo
Cantora, compositora e produtora do CD Só Xerêm
Eu acho que vou começar cantando. Se vocês quiserem me chamar
de caipira eu vou sentir um orgulho danado, porque a gente é brasileiro
e isso é o mais importante, valorizar as coisas da nossa terra. Não o
que está lá, no vizinho.
Vou cantar uma coisinha aqui,
pequenininha, bonitinha, bonitinha, do meu avô Xerêm:
“Balaio
véio de carregar, todos os peixinhos que eu pescar
Balaio
véio de carregar todos os peixinhos que eu pescar
Preparei
o meu anzol, e nada pesquei lá na lagoinha,
Passei
uma hora e meia, só dando banho na minhoquinha...”
Eu achava que vocês iam dar risada. Vou cantar de novo e você dão
risada, certo?
Como é que alguém vai achar isso
“depreciativo”? “Exótico”? Pôxa vida, tem coisa mais pura,
mais singela, mais nossa do que “levei uma hora e meia só dando banho
na minhoquinha?” que coisa mais linda...
- Não pra minhoca! (FC)
Eu estou aqui para dar um depoimento
como cantora, de 28 anos. O que estou querendo dizer com isso? Vamos
situar os 28 anos. Eu venho de uma geração nova, eu estou no mundo
moderno, nesse mundo de hoje, pasteurizado, massificado, banalizado...
muita ilusão, a gente é enganado o tempo inteiro, liga a televisão e
é enganado, vê outdoor e é
enganado, nem as pessoas se olham mais nos olhos. E aí eu dedico o meu
primeiro trabalho como cantora, meu primeiro cd ao antigo. Isso não
quer dizer que antigo seja velho, ao contrário, é muito contemporâneo.
Essa brincadeira do Balaio Véio e banho na minhoquinha é atual, não há
quem me prove o contrário. E eu tenho que falar pra vocês que eu estou
resgatando um compositor dentre tantos outros escondidos pelo Brasil.
Então eu podia ter começado meu trabalho resgatando outros
compositores que também estão escondidos, mas eu resolvi trazer a tona
o meu avô, Xerêm. Primeiro porque ele é meu avô, mas também porque
ele me deixou, ele nos deixou um acervo histórico e iconográfico, um
acervo que traz não só uma retrospectiva da imprensa, mas também da música
brasileira. E aí ele vem mostrando a raiz, a vida simples, o caboclo.
Eu posso viver no mundo de hoje, eu posso gostar das
coisas de hoje, posso gostar do eletrônico, mas eu tenho que saber
olhar o que foi feito lá atrás, e graças a Deus que já foi feito.
Então vocês podem falar o que quiserem: cultura popular, falar do sertão,
cultura de raiz, música nordestina, música caipira... mas é falar da
terra, é falar da vida simples. Fico muito triste, hoje, quando as
pessoas não conseguem parar pra olhar a lua. De vez em quando eu paro
na esquina da minha rua, em São Paulo, fico olhando assim para o céu,
vejo um monte de gente passando “o que ela está fazendo?!!” e eles
não olham para cima, para ver o que eu estou fazendo, porque a lua está
lá todo dia, sempre. Então,
essa coisa que você falou, Célia, que o caipira, o homem do campo, o
Jeca, era visto como uma pessoa desrespeitosa, uma pessoa mal humorada e
preguiçosa... Por que associar o caipira a uma pessoa preguiçosa? Eu
conheci meu avô, Xerêm, compositor cearense, que nasceu em 1911, na
verdade conheci-o muito pouco, praticamente não o conheci, eu tinha
quatro anos de idade quando ele faleceu, mas eu tenho certeza, e tenho
provas disso, pela minha mãe, pelo material que ele deixou, pela pureza
das letras das composições dele, por depoimentos de algumas pessoas
contemporâneas de Xerêm que eu ainda consegui achar, porque muita
gente já faleceu, que falaram que ele era querido. Xerêm era um
caipira, genuinamente brasileiro, um homem do campo, que gostava das
pequenas grandes coisas, ele era amorosíssimo, respeitosíssimo,
delicadíssimo.
Outro dia eu estava vendo Zorra Total – não assisto
não gente, estava zapiando – aí passou uma família que perdeu tudo,
aquela coisa “nada” comum no Brasil, aquelas famílias de tradição
que perdem tudo, então estão numa nova vida, de começar do zero, e
eles contratam uma mulher que vai fazer a festa de 15 anos da filha, mas
agora é festa de pobre. Aí tocou a campainha, devia ser o DJ, a filha
ficou tão feliz, abriu a porta – e eu fiquei tão “p” da vida –
era um sanfoneiro e um zabumbeiro. Pôxa vida, por que tudo o que vem do
caipira, do sertão, do nordeste é tão jocoso? É depreciativo?
E eu fico muito orgulhosa, não só porque sou neta
dele, mas porque nos meus shows todo mundo canta e gosta, como também
das coisas que canto do Luiz Gonzaga, do João do Vale e do
Jackson do Pandeiro. Eu conheço um monte de gente dentro da área
musical no Brasil todo que está fazendo isso, trazendo a pureza,
trazendo a vida simples, a nossa raiz, o caipira, e vendo nisso uma
beleza, porque é nosso, é genuinamente brasileiro.
Eu vou contar uma coisa particular do meu cd: eu ouvi
muitos “nãos”, “isso não vai vender”, “isso não é
comercial”, “o que você está fazendo, menina?, não quer colocar
uma sainha bonitinha pra tocar no Faustão?” Tipo um Trio Los Angeles,
sabe gente, pois é, eu fui convidada pra fazer isso.
Pôxa, como é bacana você olhar a mídia, ver o que
tem, saber dos modelos saturados, aí chega num show meu e eu vejo as
pessoas lembrando dos avós, cantando, lembrando de valores que ninguém
mais lembra porque está todo mundo nessa vida corrida, dinheiro, sem
tempo, a gente não tem lazer... mas eu acho que é possível, sim, hoje
em dia, por mais que a gente esteja nesse mundo tão massacrante, tentar
manter um pouco do lirismo do caipira. E aí caipira, pra mim tem muito
a ver também com o nordestino, porque no caso Xerêm... aliás, eu
preciso falar de Xerêm, não falei de Xerêm.
Ele veio de uma família muito simples, de sete irmãos,
de Fortaleza. Meus bisavós mexiam com arte, meu bisavô era músico,
minha bisavó escrevia poemas, brincava muito com as crianças e com
isso incentivava muito a arte e a criatividade daquelas crianças. Tanto
que meu avô começou a carreira dele com 13 anos de idade, junto com o
irmão dele Pequeno Edson, que tinha cinco anos de idade e sapateava,
cantava em francês, em inglês, espanhol, dançava, era uma loucura,
recebeu várias medalhas nas viagens do grupo pelo Brasil, porque ele
era um prodígio. Foi até convidado para ir para a Broadway, mas minha
bisavó não deixou. E essa troupe de crianças se chamava Troupe do
Pequeno Edson, que viajava pelo Brasil todo, e os jornais já apontavam
Xerêm como um promissor cômico-caipira. Então Xerêm é um super
exemplo de um caipira – por mais que ele não tenha ficado pra história,
ele não é um Luiz Gonzaga; quem aqui já tinha ouvido falar de Xerêm?...
Não por causa de mim...
Manifestação da platéia: já ouvi quando criança,
através das rádios, as duplas caipiras...
Então, qual a importância de Xerêm, por mais que ele
não tenha ficado pra história, como deveria, como tantos outros
ficaram, como Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, se bem que sobre o
Jackson, de uns dez anos para cá que houve um boom, porque na época
dele ele era reverenciado mas nem tanto. Eu acho que Xerêm foi muito
fiel, o tempo inteiro, já no começo, quando ele tinha 13 anos de idade
– obvio que eles também representavam, faziam referências ao
exterior, cantavam em francês, tinham vários esquetes, mas também
faziam esquetes brasileiros, na família, cantavam coisas brasileiras.
Mas Xerêm foi para o Rio de Janeiro na década de 30, com 23 anos de
idade, porque ele queria continuar na
música. As crianças foram crescendo, a Troupe acabou, e ele foi tentar
a sorte na grande cidade, mas a vida inteira, até os anos 70, ele foi
fiel ao caipira nas letras, na maneira de ver a vida, na simplicidade,
na ligação com a terra... No
Rio ele trabalhou com Capitão Furtado, que é o Ariovaldo Pires,
sobrinho do Cornélio Pires. Esses dois foram muito importantes na difusão
do universo e da música caipira na rádio brasileira. Alvarenga e
Ranchinho, Jararaca e Ratinho, Xerêm trabalhou com todos eles
[Manifestação na platéia].
O que foi?
Está falando de coisas que eu vivi, diz uma senhora.
É a memória viva.
Ele fez muita excursão pelo Brasil inteiro tocando música
caipira, mas na década de 70, depois que as duplas caipiras acabaram,
ele manteve um programa chamado Palhoça do Xerêm, na época ele já
estava morando em São Paulo, que era um programa que tinha sonoplastia
própria, com ruídos e sons que ele colhia, tipo o ranger da porteira
(imita: Tertuliano? Que é pai? Vai abrir a porteira, meu filho.
To ino, pai) isso tudo ele fazia e é a coisa da caricatura, a
coisa do riso, mas – e isso é uma coisa importantíssima – a
caricatura de Xerêm não era depreciativa. Ele estava sempre trajado
com chapéu de palha ou de couro, representando o nordeste, com um dente
pintado de preto, a calça curta, não importa, ele estava sempre
reverenciando, fazendo uma homenagem ao caipira, não depreciando. E
quando ele fazia alguma coisa enfatizando alguma característica bem
peculiar do caipira, ele estava provocando o riso, não uma sátira, uma
coisa jocosa. E é por isso que eu acho meu avô o máximo.
Posso mostrar as músicas? Vamos para as músicas?
Eu quero mostrar primeiro uma música que se chama Desafiando, que é uma música improvisada, contando os
“causos”, fingindo briga e provocando um ao outro. O cantador
improvisa o repente acompanhado de viola ou não e improvisa a embolada
acompanhada de pandeiro ou ganzá. Então aqui tem um desafio da dupla
Xerêm e Bentinho, a dupla mais famosa que meu avô fez, que está numa
gravação de 78rpm ela está muito ruim, mas vou colocar pra vocês
ouvirem e, pra vocês saberem o que estão ouvindo, eu e a Fátima vamos
aqui, na humildade, tentar reproduzir. Vai ficar médio... é difícil...
Desafiando – Xerêm e
Bentinho
X
Ô viola fingida
B
Não posso vê uma viola que dá
vontade de rapiá
X
Eu tô aqui cumpade Bentinho
B
O caboco Xerêm, então vamo.
X
Você agüenta home?
B
Güento, pode puxar
X
então lá vai:
Você
bem me cunvidou pra cantar um desafio
Mas
quando seu pai num pode qui dirá você, pé frio
B
Já num gostei dele,
X
Num vale tupi home
B
Vamo vê
Meu
amigo e cumpanhero agora vou te falar
Eu já
vi um grão de milho dá seis sacos de fubá
X
Oi aqui seu cara de muriçoca, comigo não, lá vai,
B
Pode vim
Meu
amigo seu Bentinho agora vou te falar
Meia
duzia como ucê eu carrego no jacá
X
Vamo seu pistilinga
B
Já vo, xô pensá
X
Manda
B
Seu Xerém vai inscuitano
Veja lá
como vai sê
valentão
que oia pra mim sente as carça desce
X
Oia rapaz, tu ta me
xingano home
B
Viu nanico, ôô
X
Oia nanico não
Onde
é que o ce parô
B
Na carça
X
Mandei faze uma
corda, da rama da melancia
Pra
prender esse caboclo dentro da istribaria
B
Agora vou insurtá memo
X
Manda cabra! Da peste
B
Cale a boca seu Xerêm, num
subeste arrespondê
Poe um
freio no seu dente e os arreio mandei fazê
X
Olha aqui seu cara de mamão macho
B
Que que é, que que há
Que
briga?
X
Vem, vem inriba,
B
Me segura, me segura
X
Solta ele, solta ele
(Português)
Um
momento, um momento pessoal,
Não
quero briga cá no arraial
Velá,
velá, vamo fazer as pazes que é melhore
Ai
depois vamo lá em casa comer uma bacalhoada regada ao azeite da terra
Vamo lá?
B
Você vai vê essa bacaioiada dele ai, senão ce ia vê agora
Então
vamo faze as pazes, é mió
Então
vamo fazer as pazes como amigo e como irmão
Vamos
saudar todo o povo com prazer nos coração
[Coloca a gravação original de Desafiando,
com Xerêm e Bentinho]. Agora quero que vocês percebam toda a entonação,
essa coisa da briga vocês vão ouvir.
Vocês podem observar que é muito diferente da música
sertaneja de hoje em dia. Tem a coisa do regionalismo também, de como
as palavras eram faladas, os trocadilhos...
[Canta Pout
Pourri de Xerêm, emendando com Cantiga
do Sapo de Jackson do Pandeiro]
Agora quero que vocês ouçam outra música gravada por
Xerêm e Bentinho na década de 40 – estou falando mais deles porque
formaram a dupla mais famosa, mas Xerêm também fez dupla com Tapuya,
sua irmã.
Essa música se chama Cana
Caiana, eu regravei no meu disco, com a minha releitura, afinal, eu
só conheci o universo musical do meu avô quando eu tinha 18 anos,
portanto, eu já estava com a minha formação musical quase fechada.
Nessa música a gente sente a plantação de cana, a
roda de boi girando, o lavrador caminhando e cantando.
[Coloca
a música original, na voz de Xerêm e Bentinho]
Agora vou mostrar a minha releitura, que é diferente.
A gente se baseou muito nas coisas dele, tem arranjo melódico que
utilizamos, mas acabamos modificando naturalmente.
[Coloca a versão do cd
Só Xerêm]
Gostaria de terminar lendo algo que está no encarte do
meu disco:
“Por que Xerêm?
Eu poderia enumerar mil razões, mas o principal motivo
é o sentimento que me levou a fazer este meu primeiro disco. O
sentimento que Xerêm deixou na essência a respeito da vida, natureza e
música. Puro que só ele! A quantidade de encontros felizes que tive
com a alegria de suas melodias, com a beleza de suas imagens e com a
pureza de seus versos foi e é tão deliciosa, que eu tinha que cantar só
Xerêm para vocês. Eu, urbana, nascida e criada em São Paulo descobri
em Xerêm as minhas raízes e a forte ligação que tenho com o baião e
suas vertentes. Sou um pouco como meu avô, Xerêm, que dizia ‘ – Qué
vida mio!?’ – deitado à beira do açude pescando com uma linha
amarrada no dedão do pé!”
Muito obrigada a cada um de vocês, à UNESP, estou
muito a fim de fazer um show aqui.
Enquanto isso, vamos colocar a criança que a gente trás,
para fora.
Canta Pisa no Pilão.
É um xote inédito de Xerêm, que achei numa fita
cassete e é uma das minhas preferidas:
Pisa no pilão
Pisa, pisa Raymundinha
Pisa no pilão
Carne seca com farinha
E bota a pimenta de cheiro
Que é pra mó de temperá
E também a cebolinha
Que é pra dá bom paladar
E depois de tudo pronto
Tu me chama que eu to cá
Que eu disso nada entendo
Eu
só sei é mastigar
DEBATE
Vamos
tentar fazer um bloco de três questões e depois as pessoas respondem.
Marcos
(aluno de Biblioteconomia) – eu nasci no
interior do Estado de São Paulo, em São Luiz do Paraitinga, mas tive a
oportunidade de morar na capital. Sabemos que São Luiz do Paraitinga é,
hoje, considerado o último reduto caipira do Estado de São Paulo. A
pergunta é para a Célia, e gira em torno do Mazzaropi, de como ele
retrata o caipira e o Jeca. Eu acho que dá para encontrar elementos na
obra de Mazzaropi, inclusive na Marvada
Carne, que não me parecem uma caricatura tão depreciativa assim,
alguma coisa bate com a realidade, agora, sabemos que Mazzaropi era
homossexual e os homossexuais também sofrem caricaturas. A pergunta é:
O trabalho de Mazzaropi seria alienado? Ele, na condição de minoria,
estaria promovendo uma alienação contra outra minoria? Você considera
alienado o trabalho de Mazzaropi?
Mariana
– Quero saber se a Cris tem alguma
composição própria.
Cris
- Tenho
FC
– Sylvia, pode-se localizar em Monteiro Lobato algum tipo de
preconceito e mesmo de racismo, especialmente se tomarmos os livros
infantis como O Sítio do Pica-pau Amarelo?
Valéria
(professora) – Aproveitando o gancho da pergunta anterior, acho
importante quando a gente percebe, a partir das falas, o quanto o
contexto da época acabou influenciando muito. As teorias racistas
estavam em plena moda naquele momento, e eram justamente as teorias que
tinham como fundamento o biológico, e a incapacidade do negro e dos
outros para tentar evoluir e chegar no patamar em que os brancos
estavam, em particular os europeus. Acho que esse diálogo é
interessante a gente fazer, não só com a literatura mas também com o
contexto da época, que acabou influenciando e está presente. Agora pra
Célia, dentro dessa mesma linha, se ela assistiu a Hora do Show
do Spike Lee? Eu acho que ele faz uma crítica muito forte, naquele
momento, aos black face, white face, e a forma como Hollywood
acabava usando o negro pra fazer, na verdade, usando o branco pra fazer
a caricatura do negro. Parece que ele acaba fazendo uma crítica muito
contundente ao cinema americano, e infelizmente no Brasil parece que a
gente não teve nada parecido, e talvez merecesse, dentro da mesma
linha, porque ele faz uma crítica e acaba desmontando a forma como o
cinema trabalha com determinados trejeitos, e quanto ele atrapalha na
construção da identidade de uma determinada parcela da população.
Célia
– eu começo pelo Mazzaropi, respondendo à pergunta do Marcos. De
fato, uma coisa é interessante, o homossexual é extremamente
caricaturado no cinema, na televisão e na cultura em geral, e o
Mazzaropi, como homossexual, não teve nenhum cuidado em relação a
isso, muito pelo contrário, não esteve nem um pouco preocupado com
essa questão, e pouca informação eu tenho de como essa questão se
colocava nos anos 50 e 60. Eu imagino que na forma como a sociedade
brasileira se organizava naquele período, esse era um tema pouquíssimo
abordado; eu não sei se se brincava com convencionais de homossexual
nessa época no cinema e na televisão, que estava começando, era muito
restrita naquela época. Pelo menos nos filmes que eu analiso desse período
essa questão não está presente, ainda, ela vai aparecer nos anos 70,
com a maldita pornochanchada; aí a figura do homossexual vai ser
escancaradíssima, assim como a empregada doméstica, a mulher; a
pornochanchada é a produção mais complicada e pobre do cinema
brasileiro.
Agora, quanto ao fato de encontrar a figura em São
Luis do Paraitinga. O problema do Mazzaropi não é porque ele encontra
figura ou ele coloca aquelas figuras, mas é a forma como ele
vai sendo construído ao longo do filme; que você encontre
figuras simples, pessoas simples, mal vestidas, mal ajambradas, que vêem
a vida de uma maneira muito simples, muito ingênua, nós encontramos
aqui também, nessa região, não é esse o problema. O problema da
figura e da forma como ele desenha o caipira, é que ele desenha aquele
caipira que se faz de sonso pra levar vantagem. Essa auto-ironia é uma
coisa presente na cultura
caipira, se a gente analisar, inclusive na música caipira de raiz, é
uma coisa muito presente. A música caipira que leva pro lado engraçado,
faz sempre uma espécie de auto-ironia, por exemplo, a idéia de dar a
espingarda pro curupira, é uma auto-ironia, dizendo o curupira apareceu
pra mim... como se resolveu o problema do curupira, que é uma figura
mitológica e poderia ter te matado, como é que você sai dessa? Aí
ele conta uma outra estória, meio cabeluda, pra dizer que saiu da estória
do mito. Essa é uma auto-ironia, que é uma forma curiosa, uma forma
interessante de tratamento, do caipira consigo mesmo, que tem muito
forte nas músicas de duplo sentido. O que fazia Xerém e Bentinho no Desafio, era isso... parece que a briga acaba porque o Português
intervém, mas, de fato, eles nunca iriam brigar, assim como o narrador
de Marvada Carne nunca iria enfrentar o curupira. As
músicas de duplo sentido, se você analisar a letra trazem muito isso.
O que o Mazzaropi faz é um pouquinho diferente. Dou um exemplo: numa
cena do Jeca Tatu ele ta dormindo no carroção, os bois estão pastando
e ele está dormindo; aí alguém fala pra ele “o Jeca, você não vai
plantar?” “não, não vou plantar, não, to muito cansado, trabalhei
o dia inteiro.” Quer dizer, ele está mentindo a respeito daquilo que
ele fez. Enquanto que o que você ouviu aqui, na frase de Xerêm, é que
“bom mesmo é pescar com uma linha amarrada na no pé”, quer dizer,
pra que eu vou gastar minhas energias, se eu posso viver com o mínimo,
que é a estória dos Parceiros do
Rio Bonito, de Antônio Candido, pra que você tem que trabalhar a
mais do que aquilo que você vai comer? Então isso é uma coisa. Dizer
que você prefere deitar na beira do açude e amarrar uma linha no dedo
do é uma coisa, e você mentir que esteve trabalhando é outra coisa.
Quer dizer, você assumir que gosta de andar de mãos dadas com a
natureza é uma coisa, e
você mentir, não, trabalhei oito horas por dia, estou cansadíssimo,
é outra coisa. É muito
sutil, mas muito importante, porque ali o Jeca passa por mentiroso e
esperto. Esperto no sentido urbano da esperteza, não é o cara que diz
“estou de mãos dadas com a natureza, por isso não sofro, vou viver
com o que ela pode me dar, pra que eu vou sofrer?”
Sofrer é para o citadino que tem que pagar o aluguel, que tem
que comprar o fogão a gaz, depois tem que comprar o gaz, depois tem que
comprar panela, depois tem que comprar televisão... é essa a diferença
entre o homem do campo e o homem da cidade, o homem da cidade tem que
comprar um monte de coisa e tem que trabalhar muito, tem que sobrar
dinheiro pra ele gastar na loja, e o caipira podia viver com aquilo que
a natureza dava. Por isso era inoportuno para o desenvolvimentismo, que
pensava que a saída para o atraso era o incremento do mercado interno.
Sylvia
– tem muitos estudos sobre Monteiro Lobato sob esse ponto de vista,
sobre a questão do racismo. Eu não trabalho com a literatura
infanto-juvenil dele, eu trabalho com a literatura dele para adultos.
Agora, de fato, se você for ler, principalmente a abordagem que ele faz
lá no Sítio do pica-pau amarelo, com a Tia Anastácia, ele passa a
chamá-la de beiçuda, todo mundo que leu o Sitio do Pica-pau lembra
dessas coisas, mas tem uma certa ambigüidade porque ao mesmo tempo que
a figura da negra era – bom a Emília era mal criada, uma espécie de persona transgressora das crianças –, ao mesmo tempo em que a
Anastácia era tratada “a nega beiçuda”, “ela não entende
direito o que se pede”, era também tratada com muito afeto, muito
respeito pelas crianças, a Narizinho, o Pedrinho e a própria Dona
Benta. Então fica um pouco essa ambigüidade. Agora, com relação à
literatura pra adultos do Lobato, a gente tem contos que são muito sensíveis
com relação à questão do negro. Ele trata o negro com uma visão
muito solidária. Por exemplo, naquele livro de contos Negrinha,
o próprio conto ”Negrinha”, o modo como a menina, agregada da casa
é tratada pela mulher que é muito má, a menina é muito mal tratada.
O jardineiro Timóteo também, num outro conto que mostra a figura do
negro, super sensível, ele lê a história da família que ele serve
por meio das flores que ele planta no canteiro, e ele só recebe
ingratidão. Tem um outro conto que se chama “Os negros”, que mostra
as barbaridades da época da escravidão, outro ainda, meio tétrico,
“Bugio moqueado” que
conta a história de uma mulher que teve um envolvimento com o escravo,
e o marido pra puni-la mata o escravo e serve todo dia na refeição um
pedaço do escravo dizendo que está servindo um pedaço de bugio pra
ela, então, esses horrores da escravidão, esses desmandos todos ele
mostra com muita crueza, com muita fidelidade nos contos. Então, com
relação aos negros, nos contos do Lobato, há a mesma ambigüidade que
há com relação ao caipira, tem várias fases e faces, dependendo do
momento em que ele escreve. Daí eu pego o gancho com a outra questão,
quando eu falo de literatura aos alunos eu falo, todo homem, quando
escreve, conta a história do seu tempo; ele está contando mesmo quando
ele não quer contar, e mesmo quando ele diz que não conta, ele ta
contando. Então eu concordo com você, esse diálogo entre a
literatura, a sociologia, a política, a história, é fundamental,
porque ler a literatura ignorando esse diálogo é ler com muita
parcialidade, é ler pouco. Ao mesmo tempo eu acho que a literatura pode
ajudar a iluminar muita coisa dessas outras áreas do conhecimento, então
eu acho fundamental esse diálogo, sim.
Célia
– então, Valéria, você colocou a questão no negro no cinema e a
leitura que o Spike Lee faz daquilo que Hollywood cria, dos estereótipos,
e se no Brasil a gente trem algum tipo de auto-crítica dessa
natureza.. Não, a gente não tem um Spike Lee, um Spike Lee no sentido
de alguém que tenha trabalhado... existe um livro chamado O
negro no cinema, mas nós não temos um Spike Lee caipira, digamos
assim, que pudesse fazer uma auto-crítica. Acho que a coisa mais próxima
disso são os cinemas engajados, mas que não estão falando nem contra,
nem a favor, entram por outro caminho. Nesse sentido, acho que quando Marvada
Carne sai, acho que em 1985, ele tem uma coisa curiosa, ele é o
primeiro filme que não tem mulher pelada, é o primeiro filme
brasileiro que sai num período em que a chanchada minguava, e ele não
era nem um cinema político nem uma pornô-chancada, um filme que
trouxesse cenas de nu, cenas de sexo; então ele foi recebido pela crítica
brasileira como grande surpresa. E ao mesmo tempo ele chama Geni Prado,
que fazia sempre o papel de mulher do Mazzaropi, sempre, sempre, era a
eterna mulher do Mazzaropi, e eles chamam também o Deonísio Azevedo,
que é a cara daquele caipira que fica no fundo, aquele quadro clássico,
então, de certo modo o filme faz uma homenagem à figura, mas uma
homenagem muito delicada, mas não é uma auto-crítica. Não chega a
ser. A gente não tem, no que diz respeito o rural, uma reflexão desse
nível, até porque acho que as pessoas não se encarnam como alguém
agredido, talvez eu seja uma das poucas pessoas agredidas – tem a Cris
aqui que também se reconhece como uma herdeira agredida da cultura
caipira. No meu livro, a epígrafe diz assim “é de ti que se fala
nessa história”, quer dizer, é de mim, quando colocam lá o caipira,
estão falando de mim, do meu pai, da minha família, das pessoas entre
as quais eu faço parte, então evidentemente eu me enxergo nesse.. mas
eu não sou cineasta, o máximo que eu sei fazer é essa crítica e,
nesse nível, em relação ao negro e em relação ao homossexual já
foi feito. Nós temos dois livros importantes que falam do homossexual e
também do negro no cinema, que tem, inclusive, uma discussão belíssima
a respeito da figura do Sebastião Prata, que é o Grande Otelo, como
ele era tratado na chanchada carioca, sempre como uma figura que servia
de escada para o Oscarito. Tem até uma tese na Unicamp sobre isso.
Agora, eu acho que nós não temos um cinema fazendo essa discussão, até
pela pauperização do cinema brasileiro. O cinema brasileiro é tão
pobre que ele tenta sobreviver com as próprias pernas que não faz
ainda nenhum tipo de auto-crítica como Hollywood faz porque Hollywood já
tem uma indústria, então já não corre o risco de dizer estamos
criticando uma coisa que mal sobrevive. Talvez no Brasil a gente tenha
esse medo de falar porque mal sobrevive; quando consegue colocar alguma
coisa na tela “ai que bom”, ainda que sejam algumas coisas muito
complicadas. Mas isso é outra história.
Célia
– eu quero perguntar pra Cris: você disse que começou cantando
outras coisas, o que você começou cantando, já que você está
fazendo declarações aqui, conta tudo pra gente.
Cris
– “Um cantinho, um violão, esse amor uma canção, pra fazer feliz
a quem se ama, muita calma pra pensar/ e ter tempo pra sonhar/ da janela
vê-se o Corcovado, o Redentor que lindo...”
Fábio
(pós-graduando em Ciências Sociais)
– Com relação à nossa profissão, de falantes, às vezes eu
acho que falta pra gente um pouco dessa paixão, às vezes a gente fica
nessa racionalidade muito cartesiana, e o mundo também é tesão... Eu
queria fazer algumas questões, algumas reflexões...
Cris
– mas eu queria ter mais isso que vocês
têm... a gente tem é que buscar o equilíbrio
Fábio
– Isso é uma síntese interessante. Tem
uma idéia no Brasil, de que o brasileiro é meio pacífico, eu conheço
muito pouco sobre essa discussão, então queria saber se isso tem
alguma relação com a noção do caipira preguiçoso, que não quer
fazer nada. Eu tenho uma relação muito ambígua dessa idéia do
caipira e do interior. A minha família é completamente urbana, não
tem quase ninguém do interior paulista nem do nordeste, mas eu me
identifico muito com essa cultura, no seguinte aspecto: acho que falta
muito isso que a Cris falou, “as pessoas não se olham nos olhos” e
esse contar estória do caipira, esse contar “causos”, é esse
contato humano direto, que você não tem pressa, porque eles contam
aquelas estórias de um copo que vai cair na mesa, aí fazem aquela
volta, vai contando, é um tempo diferente que se tem, e nisso eu me
identifico muito com o mundo caipira, essa negação da loucura que a
vida urbana nos traz, a falta de olhar pra lua, essa falta de olhar para
o outro... Só que ao mesmo tempo eu tenho uma relação estranha,
porque eu gosto dessa loucura, do pessoal que é nervoso, que é
agitado, que quer mudar as coisas, que é briguento, você entendeu? Como você diz, “é legal esse lado que vocês têm”, de
racionalidade, de refletir, mas me parece que se você também só
cultua o caipira – não acho que vocês estão fazendo isso – também
não seria totalmente positivo se você não ver esse outro lado. Eu vi
uma peça esses dias, a peça era interativa, e o cara pediu para a
gente escrever aquilo que não gostávamos, dizendo “mata, mata”. Aí
escreveram “a preguiça” e falaram “mata, mata”, e eu falei não,
não mata não, eu quero ter preguiça também, quero ficar lá
quietinho, deitado na rede e olhando para o mar, sem fazer nada... Então
assim, tem coisas que eu acho que a gente tem que recuperar, dessa
cultura caipira, e tem coisas que eu acho que a gente tem também que
valorizar no urbano. Então eu queria que alguém comentasse sobre isso,
como é essa relação de uma “urbanóide” com essa coisa do
caipira, e sobre essa relação do brasileiro como um sujeito passivo,
se tem alguma relação com essa noção do caipira.
Cris
– eu concordo plenamente com você. Gosto de ser urbana, eu vivo nesse
mundo urbano, mas confesso que quero mudar de lado, um dia. Imagina se
fico rica, tenho meu jatinho pra ir pra Europa
fazer meus shows, viajar pelo Brasil, aí eu vou morar no mato, ou na praia ou
no campo: é um sonho. Mas eu gosto do urbano, e é como eu falei no início,
tem que ter equilíbrio; da mesma maneira que a tem que ter a paixão, a
gente tem que ter o racional. Agora, conseguir o equilíbrio demanda
muita maturidade... Mas assim, eu gosto da música orgânica – to
falando da música, ta? – então, como eu vivi o urbanóide e eu faço
um resgate. Eu não acho que eu faça exatamente como foi feito. Acho
que dou uma cara nova, como todos os músicos, com o violonista, enfim,
eu tenho 28 anos, eu ouvi outras coisas, eu só fui ouvir música
caipira com 18 anos, realmente, estudar, pesquisar. Mas realmente, gosto
de ouvir um pouco de música eletrônica mas não quero misturar não,
eu gosto do orgânico, e o orgânico do homem tocando, por mais que a
gente viva nesse mundo de hoje, o homem tem que continuar fazendo as
coisas, não tem que deixar a máquina fazer, senão a gente vai perder
muito. Então eu gosto dessa mistura, gosto do urbano, mas gosto de
preservar e, pelo menos no meu trabalho, não ter nada mecânico. Mas eu
entendo e gosto também de ver/ouvir, mas acho que o equilíbrio é o
melhor negócio. E até alcançar o equilíbrio, deve deixar o tempo
correr.
Célia
– Fábio, em relação a isso que você falou, no cinema é muito
curioso, porque você tem exatamente o outro lado, o lado daqueles que
dizem que no rural está a salvação da solidão urbana, a salvação
do não olhar-se nos olhos, a salvação da falta de afeto, da
solidariedade, etc. Tem um olhar romântico sobre esse rural, que
endeusa esse rural e coloca o rural como uma coisa perfeita. E nós
sabemos que também ali há a violência, há ali a exploração do
homem sobre o homem na situação de trabalho; que, enfim, não existe
um rural pacífico e um urbano desgraçado e vice-versa. Essa idéia de
rural perfeito está em Central do Brasil, por exemplo. Central
do Brasil é um filme que eu critico fortemente porque ele passa
essa idéia: “vai pro nordeste porque lá você vai viver feliz da
vida”... Na música o Cartola reforça “...quero ouvir os pássaros
cantar, o rio correr, preciso me encontrar...”. Parece que você vai
para o campo nordestino e lá se encontra. E se esquece que lá também
existem outros problemas.
Mas
o que há de mais interessante em relação ao que você falou sobre a
passividade, é que sobretudo nos filmes engajados no Brasil, dos anos
60, isso veio à tona. Por exemplo, o grande Glauber acreditava que a única
proximidade de uma rebelião sincera que a gente tinha tido tinha
acontecido no rural, com Canudos, ou então com a rebelião com os
beatos do Conselheiro, dos outros beatos, ou com a rebelião do Cangaço.
O Glauber acreditava nisso, que se alguma rebelião houve no Brasil, ela
aconteceu do rural para o urbano, que também é um pouco de delírio, não
deixa de ser, mas a passividade não passa pelo caipira, a passividade
passa pelo apagamento de rastros que na cultura brasileira é muito
forte. Existe um livro editado pela Editora da Unesp que se chama Morte
e progresso: a cultura brasileira como apagamento
de rastros, organizado por Francisco Foot Hardman, que mostra como
isso acontece em Guimarães Rosa, Lima Barreto e em outros autores. Como
Guimarães, por exemplo, traz coisas pra literatura que a história quis
esconder, quis fazer desaparecer. Então não sei se a questão da
passividade passa pelo caipira, talvez a Sylvia tenha outra idéia ou
possa dizer mais coisas à respeito, mas em relação ao rural, o que nós,
o que eu reclamaria de uma abordagem no Brasil, é que essa abordagem não
mitificasse tanto, pudesse ver a sua pluralidade. E existem filmes
interessantes sobre o rural também, existem filmes que tratam o rural
dentro dos seus próprios conflitos; um dos que eu gosto, não sei se
todo mundo aqui gosta, tem gente que realmente não gosta, é o Eu,
Tu, Eles, por uma razão curiosa: porque ele circunscreve aquele
espaço, trata dos problemas das pessoas ali naquele espaço, não
compara com o urbano, não fica comparando com outros espaços, mas
mostra que todos eles têm suas razões. E não porque é Jeca, porque
é sonso, porque é idiota, mas todos tinham as suas razões. Ou então Abril
despedaçado, que também mostra o conflito interno, enfocando que
todos têm suas razões, então têm filmes interessantes, que não
fazem do rural o estranho, o outro, aquele que não se parece nada
comigo. Tem filmes – e literatura também – que vai buscar nesse
sujeito o que ele tem de mais humano, obviamente, o que ele tem de mais
forte, que são seus conflitos, suas questões. Isso, mesmo na comédia,
o Nhô Quim mostra, ele tinha um conflito com ele e com o tempo dele,
ele queria conhecer essa tal de “carne de boi”, que é o desejo do
consumo, evidentemente, e ele vai pra cidade, então ali aparece o
sujeito na sua razão. Então, quando você tem a caricatura você olha
de fora, você olha como se fosse uma coisa muito distinta de mim, de
você, dos outros, é um pouco essa pluralidade que falta, pelo menos no
cinema dos anos 60 e que a gente começa a retomar mais recentemente.
Sylvia
– Quando você fala se cabe essa associação entre a imagem passiva
do caipira e o homem cordial, submisso, subserviente... Acho que
depende do momento em que se dá essa abordagem. É como a Célia
também falou, nos anos 60 o cinema faz assim, depois a coisa muda. Na
literatura me parece que foi a mesma coisa. Se você pegar esse momento
de 1910 até 1920, quando o Lobato escreve, o Lima Barreto, acho que tem
um pouco essa visão, sim, do brasileiro como uma figura passiva,
subserviente, submissa. O próprio Lobato, no texto em que ele pinta a
imagem do Jeca – não lembro agora se é na Velha Praga ou no Urupês –
ele faz uma comparação com o colono europeu. Ele fala “olha, o nosso
caipira é assim, é a preguiça, é a inércia, é o atraso, o povo
europeu pega o arado, ele trabalha, tem mais garra, mais vontade”. Então,
implicitamente, eu acho que está colocada essa questão sim, um pouco
racista, um pouco determinista, a hereditariedade, a mistura de raças dá
nisso aí mesmo... até o Lima Barreto mostra isso. Não sei se vocês vão
lembrar, num capítulo do Triste
Fim de Policarpo Quaresma, no sítio do Sossego – porque o
Policarpo se dá mal em todo lugar em que ele vai, e no Sítio do
Sossego também – aí tem um momento em que a Olga, a afilhada dele
visita o Policarpo, e ela fica abismada – é um momento bonito do Triste
fim... – ela vai andar pelo sítio e ela fala que não consegue
entender porque que com tanta terra, com tanta riqueza, existe tanta miséria,
como as pessoas passam fome, têm aquelas casas super precárias, sem
quaisquer condições de viver. E ela vai conversar com o tal de
Felizardo – o nome já é irônico, Felizardo é um trabalhador do
campo , é o agregado – e ele fala “Ah, não tem jeito, não tem o
que fazer” . “Por que você não planta?”, diz ela. Ele diz “a
terra não é minha”. “E por que você não financia?” ele
responde “o dinheiro que o governo pode investir, ele vai investir nos
imigrantes, nos colonos europeus, ele não dá nada para nós.” Então
acho que o Lima Barreto expressa uma visão mais aguda desse problema,
porque aponta causas para o comportamento desmotivado do homem do campo.
Mas isso muda, então depende do momento; é lógico que se você for
ver a visão do homem do campo, não digo do caipira, que você encontra
no Graciliano Ramos, no Vida Secas,
já é outra coisa, ele vê o outro de uma maneira solidária. Ele dá
voz pra esse outro. O Guimarães Rosa, mais recentemente o Chico Dantas,
são regionalistas, já é uma outra perspectiva, que depende do
momento. Mas que, num certo momento, principalmente no início do século XX
(1900-1920), há essa associação, ela existe, sim, principalmente pela
influência da perspectiva mais racista, determinista, que eu acho que
vicejava com bastante força. Agora, sobre aquilo que você falou, sobre
como conciliar, eu acho que esse dilaceramento faz parte da nossa condição,
porque lógico que é muito bonito ouvir a Cris cantar, a gente gosta, a
gente acha que tem que ser preservado, que tem que ser ouvido, que tem
que ser divulgado, que não pode ser esquecido, e ninguém pode cuidar
disso melhor do que a gente mesmo. O Antônio Candido, de
quem eu gosto muito, fala isso sobre a literatura brasileira:
“a literatura brasileira é um galho menor de uma outra literatura,
que já é um galho secundário, que é a literatura portuguesa”. Quer
dizer que ela tem problemas, mas se a gente não gostar dela, e não
cuidar, quem vai gostar? E das nossas coisas também é assim, não só
por obrigação, mas porque têm valor, mesmo. Agora, a gente tem, na
nossa raiz, também a contradição que tinha Lobato, que tinham seus
contemporâneos, inclusive,
por isso que eu gosto de estudar esses autores, Lobato, Lima Barreto,
Cornélio Pires, Waldomiro Silveira, esses do começo do século, pois
cada um tinha suas contradições, à sua maneira, eles amavam o caipira
e achavam importante preservar, mas eles não eram caipiras; essa é a
nossa condição, eu posso até me solidarizar, mas eu não sou
“caipira”, eu sou uma pessoa da cidade, tenho outra formação,
outra cultura, mas isso não me exime de amar essa cultura
e achar que ela é válida e achar que ela tem que ser
preservada.
Elisângela
(aluna de Ciências Sociais) – Minha Iniciação Científica é sobre
a literatura infantil de Monteiro Lobato. Quando a Fátima perguntou
sobre o racismo em M.Lobato, ficou pra mim uma questão, pois você
colocou que esse racismo é ambíguo. Não seria velado? Porque todas as
vezes o Lobato apresenta a Tia Anastácia como a negra de estimação na
família, então eu fico me questionando, que estimação seria essa?
Seria aquela estimação de gostar ou aquela estimação com que você
trata um animal? E sobre o sistema de cultura, todas as vezes em que ela
aparece – tem até o livro Histórias
de Tia Anastácia – a cultura dela aparece sendo criticada pelas
crianças, sendo questionada, a Emília fala que o povo é burro, que não
se pode exigir do povo o caráter letrado dos nossos grandes escritores,
dos nossos grandes letrados... então eu fico me perguntando, esse
racismo seria realmente ambíguo ou seria velado?
Gerson
(aluno de Ciências Sociais) – Eu queria perguntar pra Célia e para a
Cris sobre o forró universitário. Em que medida o forró universitário
não aparenta ser o mesmo sertanejo de, por exemplo, Zé Camargo e
Luciano. Eu queria falar também, quando você cantou a música da
farinha com a carne seca: olha, a farinha com carne seca, só quem comeu
sabe o quanto é gostoso!
Alex
(pós-graduando em Ciências Sociais) –
Aproveitem e falem também sobre as músicas sertanejas que a gente tem
por aí, a diferença com a música caipira.
Sylvia
– Respondendo para a Elisângela, como
eu já falei, não trabalho com a literatura infantil de Lobato, o que
eu lembro dela foi na leitura da infância, da adolescência, depois não
retomei isso aí. Li alguma coisa sobre, na medida em que isso me
interessava para o meu projeto, que era sobre a sátira na literatura
para adultos, mas eu tenho a impressão de que está enquadrada na visão
que ele tem. Desempenha um papel importante essa literatura dele para
aquele momento histórico, pelo fato de escapar da tradução, da versão
do texto estrangeiro, que é o que mais se fazia para crianças, naquela
época, e tentar fazer uma coisa que fosse mais brasileira, mais nossa,
mas é uma visão, ainda, que está muito dentro dessa perspectiva de
literatura pedagógica,
edificante, a literatura como ensinamento, que é uma coisa que eu acho
que a literatura dirigida para crianças, hoje, já superou. Tanto que o
que a gente observa é que, não fossem essas adaptações que existem
nas tvs para o Sítio do Pica-pau amarelo, coisas desse tipo – também
não tenho contato muito próximo com crianças, estou dando aulas para
universitários já faz tempo, mas tenho filhas dessa idade – a
literatura de Lobato para crianças, hoje,
não tem um apelo muito grande, o texto dele, se você dá Reinações de Narizinho, por exemplo, para uma criança ler, está distante da realidade deles,
pela linguagem, pela tonalidade, por
esse tipo de coisa. É um texto um pouquinho rançoso, porque fica
patente – a criança de hoje tem essa malícia para perceber – que
ele quer muito ensinar, ele é meio doutrinário. A Emília é
malcriada, a dona Benta corrige, fala “você não pode cobrar do homem
do campo...”, tem essa visão condescendente, complacente. Quanto à
visão do negro, pode ser mesmo que seja, precisaria reler direitinho
pra dizer o que eu acho. Quando eu digo que é ambíguo, eu não penso
que o racismo de Lobato na literatura para crianças é ambíguo, eu
acho que o Lobato é ambíguo com relação ao negro como ele é com
relação ao caipira. Da mesma maneira que a negra aparece como a figura
de estimação no Sitio do Pica-pau Amarelo, nos contos para adultos ele
aborda a questão da escravidão com muita pertinência. Então ele é
ambíguo aí como ele é com relação a outras coisas.
Por isso, não poderia dizer algo, definitivamente, precisaria
retomar, ler, reler, para te dizer.
Célia
– sobre forró universitário, essa é uma pergunta para mim muito
perigosa, quem entende de música aqui é a Cris e a Fátima, eu estudo
cinema... Só tenho a dizer que, em termos de poética, são muito
distintas, são distintas também em termos musicais, evidentemente, mas
como eu conheço pouquíssimo do forró universitário... mas falando de
Chitãozinho e Xororó, pra responder para o Alex, a poética deles é
completamente distinta, sem contar, evidentemente, a forma melódica,
musical, mas isso quem pode responder é a Cris. A Fátima está aqui me
cantando que é feita em laboratório... A poética é muito distinta,
p. ex., a forma de cantar, a coisa dos carros, dos motéis, das camas,
das brigas de amor, das mulheres fáceis, passa longe da poética do
rural original. Talvez o que a gente encontre, aqui, é essa poesia ingênua,
“dar banho na minhoquinha”, que se tem até um duplo sentido, ele é
muito delicado, ele é tão delicado que não está falando nada em relação
ao outro. Essa música [sertaneja atual] tem um machismo muito forte.
Recentemente eu vi uma campanha aqui, sugerindo aos alunos que bebessem
moderadamente, e passando num posto aqui perto para abastecer o carro, e
vocês sabem que no posto tem sempre alguém ouvindo essa música
sertaneja, uma delas dizia assim, “eu briguei com ela, agora eu tomo
todas, vou tomar até cair”, e os meninos ouvem essa música fazem
isso; o que é impressionante é que é uma espécie de “cartilha”,
eu bebi todas porque ela brigou comigo, ou porque não sei o que
aconteceu... essa música é toda complicada em termos de poética, é
uma narrativa daquilo que há de pior do sujeito atrasado, “vou ser
irresponsável mesmo, vou encher a cara, vou beber, vou pegar meu carro
e sair a mil por hora...” e é disso aí que essa poética fala. E a
poética da música caipira, pelo menos a que a gente conheceu, ou dessa
que estamos trazendo aqui hoje, fala de outras coisas, muito diferente.
Cris
– essa coisa da bebida, é uma letra o que?
Célia
– essa letra, por exemplo, induz as pessoas a essa vidinha
despreocupada, sem nenhuma relação com a natureza, com uma péssima
relação com a própria vida – vamos encher a cara, vamos arrebentar
– quer dizer, que sujeito é esse que canta isso? Eu vou beber até
cair se você não quiser dormir comigo ou coisa do tipo.Que prática é
essa?
FC
- uma violência velada?
Célia
– eu acho uma péssima relação com a
própria vida, tipo eu estou aqui pra me arrebentar, eu não tenho amor
nenhum à vida, eu não tenho nada pra fazer, nada para acontecer, meu
negócio é encher a cara. E você tinha a brincadeira “a marvada
pinga que me atrapaia”, não sei se vocês se lembram dessa música,
mas essa tem um senso de brincadeira, “aqui mesmo eu bebo, aqui mesmo
eu caio”, tem um senso de brincadeira, de gozação, não é para
levar a sério a estória da pinga que me atrapaia, enquanto que se você
brigar comigo vou beber cachaça, vou beber cerveja... é dito de
maneira séria. O que muda? Muda o tom e é o que muda na literatura o
tom de comédia, é o que muda o tom no cinema – o que é para ser
levado a sério e o que não é para ser levado a sério – mais ou
menos isso.
Cris
– pegando esse bonde dessa letra que induz, tem uma música que é
para provocar o riso, a marvada pinga, e tem uma música do meu avô que
diz assim (canta) “ o pingo larai/ balança mas não cai/ o pingo
larai ta numa brasa até demais/ a cachaça ta queimando na cabeça do
larai/ eu daqui to reparando na besteira que ele faz...”
E ele brinca imitando bêbado, faz o teatro de estar bêbado...
como também tem uma coisa, que as pessoas às vezes me perguntam, sobre
o Pisa no Pilão. Passou pela
cabeça de vocês, em algum momento, uma coisa machista, com relação a
uma cozinheira que cozinha para seu homem? “faz aí, eu só quero é
mastigar...” Vou cantar de novo: “pisa no pilão/ pisa pisa
Raymundinha/ pisa no pilão, carne seca com farinha./ E bota a pimenta
de cheiro/ que é pra mó de temperá/ e também a cebolinha que é pra
dar bom paladar/ e depois de tudo pronto, tu me chama que eu to cá/ eu
disso nada entendo, eu só sei é mastigar/ pisa no pilão, pisa pisa
Raymundinha.” Vocês percebem aí alguma coisa machista?
Uma
pessoa da platéia – mas será que eles
sabem o que é “pisa no pilão”?
Cris
– mas não é o pisa no pilão, é o faz aí que depois eu só quero
mastigar...
A
pessoa da platéia – eu quero dizer que
quando você diz “pisa no pilão”, pra mostrar para os mais jovens,
e urbanos, que pisar é socar na farinha com a carne...
Célia
– eu tenho um palpite: se você analisar racionalmente, com olhos
digamos acadêmicos, você vai enxergar
um machismo lá...
Cris
– por que? É uma brincadeira!
Célia
– porque é o homem mandando fazer, agora, isso é diferente do que as
pessoas fazem no cotidiano? Não. É diferente do modo como todos os
homens, de certa maneira, pedem para suas mulheres fazer a comida? Não.
Daí vai entrar aquilo que a Sylvia falou do contexto. A diferença é a
forma, inclusive amorosa. O que tem de diferente, por exemplo, nos
meninos que estão ouvindo a música sertaneja-brega? Nós sabemos aqui
que existe uma prática entre os jovens, de laçar as mulheres; atitude
machista, inclusive agressiva, violenta, discriminadora, tratando a
mulher como objeto sexual. E aqui é uma relação muito clássica na
vida cotidiana brasileira. É machista na medida em que a sociedade também
era. Ou então, a divisão do trabalho é clara: ele trabalha na roça e
ela trabalha em casa, também isso passa. Nós sabemos que no campo é
isso, ele faz o trabalho lá e ela faz o trabalho cá. Também tem esse
lado e nós não podemos dizer que não está colocado. Agora é
diferente de tratar a mulher como um objeto sexual, que a gente brinca
“de dia a gente briga de noite a gente se ama”...
Cris
– mas onde eu estava querendo chegar, com a letra do Pisa
no Pilão é – cada um tem o seu olhar – mas na minha cabeça é
uma brincadeira, eu imagino o Xerêm do lado dela, vendo ela cozinhar,
apaixonado por ela, tomando uma bela de uma pinguinha e “faz aí, põe
a cebolinha, vou dar uma voltinha ali, oi minha Raymundinha...” a
mulher dele ele chamava de Satuzinha “oh minha Satuzinha, vem cá”...
Mas eu estava querendo falar que, de uma maneira geral, mais ou menos
geral porque a gente nunca pode generalizar , a música na mídia, hoje,
não só o forro universitário, como o sertanejo, o brega, não é tão
construtivo, como a Célia falou, não é construtivo, só banaliza o
amor, banaliza até o crescimento pessoal de cada um, faz uma briga, “é
isso aí, bate na mulher mesmo”, não é de um aperfeiçoamento
interno, de um pensamento maior, de um conhecimento, de respeitar o próximo.
Em relação à harmonia, é a mesma coisa. A roupagem, os arranjos...
no Pisa no Pilão o que é
roupagem e arranjo – todo mundo entende? Roupagem: meu avô, no Cana
Caiana, tocou zabumba, colocou duas violas caipiras e lá no fundo
tinha um sopro de trompete. Eu coloquei uma viola caipira, um bombo que
não tem nada a ver com a música regional mas eu gosto do som, quis
experimentar, quis dar essa roupagem, puxei mais para o baião, a
roupagem do meu avô é mais caipira. Só que no meu baião eu coloquei
viola caipira... então são os instrumentos. Hoje em dia, na música
sertaneja, tem guitarra à pampa. No forró universitário, nossa, como
tem guitarra! Isso tem a ver com o que você falou, Fábio, tem que ter,
fazer a relação com o passado, fazer o que já foi feito e dar uma
roupagem nova. Eles gostam de ter a guitarra, eu, no meu disco preferi não
ter, mas isso não quer dizer que é ruim, não é o que eu quero fazer.
Mas as letras são o que você falou, Célia, são o maior problema. E o
jeito de cantar ficou tão estereotipado – tem gente que gosta – mas
sinceramente não lembro de Tonico e Tinoco, nem Pena Branca fazer
ahhhhhhhhhh (isso se chama vibrato), e não acaba nunca. Parece que quer
misturar o vibrato que faz a cantora de jazz, parece que os sertanejos
ouviram jazz e falaram vamos colocar... cada vez mais você vê isso. O
Daniel faz menos – é bom esse menino, sabia? Ele é bom – ele faz
algumas coisas da raiz, eu me lembro do rodeio, enfim. Mas o Forró
Universitário fala o tempo inteiro de amor, isso enche. Não fala nada
da praia, nada da natureza, da vida simples, do caipira, nem do forró
mesmo. Fala eu quero “encochá”, não é “chamegá”, é “encochá”.
David
(aluno de Ciências Sociais) -
Na verdade queria fazer um
relato meu. Desde quando nasci, não sei se esse programa tem essa
idade, mas meus pais sempre ouviam em casa Viola,
minha viola; isso até hoje, primeiro era de domingo, agora é de sábado...
e por incrível que pareça, eu e meus outros irmãos passamos
indiferentes a isso, isso não nos afetou: eu gosto mais de rap, meu irmão
de música de metal e clássica, e o outro de rock e pop. Quer dizer,
hoje, eu pensando nisso, por que em uma casa em que tem a cultura de música
caipira não colou? Isso até eu chegar no interior. Então, o que eu
queria colocar é que agora eu respeito muito a música do interior,
inclusive tem no acervo de discos
que meu pai ouve, não tenho a mínima idéia do nome deles, são de
Brasília, são muito bons e eu nunca ouvi, só na Inezita. Então eu
queria perguntar se esse programa é realmente o último programa que
ainda dá espaço para a música caipira, porque nem mesmo em rádio eu
ouço.
Lívia
(mestranda em Ciências Sociais) – Eu quero fazer um pergunta para a
Cris. Quando você cantou a música falou eu faço isso com as crianças,
tal, e eu fiquei pensando, sou de São José dos Campos, Vale do Paraíba,
região dos caipiras, lembro meu avô sempre fumando um cigarrinho de
palha, me contando “causos”, mas eu dei aulas para crianças e
adolescentes e eu via que a relação deles com os avós não era a
mesma que eu tive na minha infância. Falavam “a vô, me leva só até
a esquina, não chega perto da escola, porque não quero que ninguém
escute o vô falando ‘pobrema’. Então eu queria saber como é o seu
público infantil com a música caipira.
Cris
– Eles amam. Tem essa escola onde eu faço um trabalho nas festas de
primavera, e principalmente nas festas juninas. É uma escola
diferenciada – pra vocês terem uma idéia são crianças que estudam
Van Gogh e aí fazem uma super exposição com o que eles sentiram de
Van Gogh. A cada ano explora-se o universo de um compositor. O Pena
Branca já foi lá... e eles fazem um trabalho, ensaiam com a criança
um mês inteiro, a criança vai lá e canta com Pena Branca, ficam em
volta dele – quatro anos de idade. Então você ouvir essas crianças
cantarem Pisa no Pilão... é
a coisa mais linda. Toda festa junina tem isso, com música de raiz
mesmo. Quando eu faço eu já não faço exatamente como é na raiz. O
último show que eu fiz foi em São Bernardo do Campo, na sexta feira
antes de vir para cá; tinha uma criança de sete anos que cantava todas
as músicas do meu disco, até as mais difíceis, tipo No
automóvel não (canta um trecho), um samba-choro, e ela cantando,
ou senão “fiz uma casa bonita....” Eu mal podia acreditar; ela
subiu no palco, cantou. Então eu acho que a educação é importantíssima,
você [referindo-se ao Davi] sempre ouviu em casa mas não gostava, só
foi cair a ficha há uns anos atrás?
David
– Hoje.
Cris
– Eu acho que a educação é importante, além dos pais tem que ter a
escola também. Mas respondendo à sua pergunta, as crianças adoram.
Agora, vocês sabem por quê o programa da Inezita não sai do ar?
Porque o público não deixa. Chegam milhares de cartas na TV Cultura
pedindo que o programa seja mantido. Conheço a Inezita, vou comer rã
com ela de vez em quando – ela me ensinou a comer rã, adorei. Já
cantei lá algumas vezes, ela conheceu meu avô, já cantou com ele, tem
uma gravação em fita K-7, ela tocando violão e ele no berimbau, ela
novinha. Ela fala que a TV Cultura, por diversas vezes, já quis tirar o
programa do ar nesses 25 anos de existência do Viola,
Minha Viola. A última foi agora, mas teve um revertério, tanto que
o programa agora voltou a passar no Brasil inteiro, antes não era,
fazia 10 anos que não passava no Brasil todo. Então são as cartas dos
fãs, o público. Tudo bem, pode ser ainda uma minoria da massa, do povão,
mas as pessoas gostam. Falar que o povo não gosta desse tipo de música
é mentira. Há muitas rádios que tocam música caipira.
Célia
– Quero dizer uma coisa para a Lívia.
Muito do horror que as crianças têm pelo fato de os avós falarem
“pobrema” vem do serviço do Mazzaropi: desenhar o sujeito que fala
errado como sujeito caipira, no sentido pejorativo, no sentido de ter
vergonha dele, de ser algo a ser superado, fez esse efeito. Fez efeito
inclusive no sentido de as pessoas tentarem apagar todos os indícios de
que possa ter de que ela vem do campo, de que ela tem alguma ligação
com o campo. O caipira foi sinônimo do atraso, do velho, daquilo que
você tem que ter vergonha mesmo, então, era pejorativo. Eu acho que
muito do papel do Mazzaropi foi esse, passou para os pais dessas crianças,
que devem ter a minha idade, da minha geração, que passaram para os
filhos na seqüência. O cinema daquela época, que cumpria o papel da
televisão hoje, porque muita gente ia ao cinema, tem responsabilidade,
sem dúvida, dessa concepção em relação ao homem do campo, ao homem
simples.
David
– Você falou que seu avô e o irmão
dele cantavam em francês, em espanhol. Onde eles aprenderam isso se
eram, como você disse, de família simples?
Cris
– Luiz Gonzaga foi para o Rio de Janeiro e acabou tocando em bordéis,
na rua, nas casas de luz vermelha. Tocava bolero. Onde ele aprendeu? De
ouvir. Agora imagina uma criança de 5 anos de idade, como meu tio
Pequeno Edson... ou Tapuya (a irmã e depois parceira de Xerêm) cantava
La comparsita... de ouvir. Há pouco vocês todos cantaram comigo...
Ainda mais que o pai do Xerêm e do Pequeno Edson era músico de
orquestra, então tocava outro repertório além do brasileiro. De
ouvido mesmo.
Mas
agora fiquei instigada. A Cris compositora está dormindo. Eu componho
desde meus 15 anos, vou trabalhando aos poucos. Às vezes a coisa vem
inteira, outras a melodia está pronta, o arranjo está na cabeça, tudo
pronto..
Vou cantar um trechinho aqui – eu
escrevi a letra porque nem me lembro direito, tanto que a compositora
Cris Aflalo está dormindo, já que só mexe com Xerêm, e feliz. Tudo
tem o momento certo.
“Me lembro do sol que se pôs, lá do
morro.
Do pulo do galho no rio, corredeira. Do
galope Caiabí.
Fiu, fiu, passarinho presente, homem sempre, linha sem
vara, Severo, tucunaré......”.
Pode
ser uma poética simples, mas tem muito a ver com meu avô, com a sua
relação com a natureza, com as coisas simples
da vida.
Em seguida canta Soca
Passoca, que nessa parceria com Ariovaldo Pires perdeu o ç e ganhou
ss. Ariovaldo Pires, ou Capitão Furtado, foi parceiro de Xerêm em inúmeras
outras composições.
Soca
passoca
A
maneira do sertão
Eu
pra cá, você pra lá
Na
batida do pilão
O
meu xodó
Dá
a nota no forró
Negaceando
faz que vai
Num
passinho sensação
Gingando
assim
Bate
o pé
Pisca
pra mim
Eu
suspiro então ai, ai
Na
batida do pilão
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