Baleia, gente e bicho em Vidas Secas Maria Fernanda Rodrigues de Lima Talvez pudéssemos dizer que no filme Vidas Secas existe uma confusão entre homens e animais. As personagens humanas são apresentadas de uma maneira rude, áspera, quem sabe combinando com o ambiente da seca, ambiente esse que parece sugar a humanidade dessas pessoas e que as obriga a viver em uma constante luta pela vida. Algo muito próximo ao que acontece na vida animal. Talvez também por isso Sinhá Vitória se questione: “será que nunca haveremos de ser gente?”. Já o que acontece com a cadela Baleia é diferente, ela pode ser considerada a personagem mais humana da história. Logo no início percebemos isso quando ela é a primeira personagem a ser apresentada na tela, quando vemos que ela tem um nome enquanto os filhos de Fabiano não, o que os aproxima muito de personagens alegóricos. Ainda quando o filme começa, é Baleia quem parece conduzi-los na procura por um lugar melhor para a dura travessia que estão enfrentando na condição de retirantes. Quando, por duas vezes, o menino mais velho cai, é ela quem avisa ao pai e quem parece chamá-lo como se quisesse apressá-lo, pois o caminho ainda é longo. A cachorra também é o mimo da família e é a única que recebe o carinho de todos, sendo tratada como uma igual. Um exemplo disso é a cena em que o patrão pergunta a Fabiano se aquela era sua família e ele logo se lembra de incluir Baleia em sua resposta. Num outro exemplo, a família está na Vila mas Sinha Vitória e os meninos não conseguem encontrar nem Baleia e nem Fabiano e as crianças perguntam insistentemente pela cachorra, embora não indaguem pelo pai. Apesar de central, Baleia não é o único animal a ocupar uma posição importante nesta narrativa, a presença dos bois também circunda constantemente o filme. São eles que recebem o maior cuidado quando o assunto é nutrição e a preocupação de Fabiano em mantê-los saudáveis é mostrada em algumas cenas. Em uma dessas cenas, Fabiano atira nos pássaros que bebem a água empoçada que seria destinada aos bois e, por fim, são eles, o bois, que são levados pelo patrão em busca de um lugar onde possam sobreviver quando a seca aperta, enquanto a família de Fabiano é abandonada à própria sorte. Os bois também recebem uma atenção especial dos meninos que, por se espelharem no pai, talvez vejam a profissão de vaqueiro como seu futuro. Por isso, desde pequenos, já o imitam na lida com os animais, inclusive quando fazem deles companheiros de brincadeiras. Os animais também apresentam uma função cíclica no filme pois, logo no início, quando estão passando fome por causa da seca, Sinhá Vitória mata o papagaio para alimentar a família, consolando-se com a desculpa que ele não servia para nada. Quando a seca volta a assolar a família, é a vez de Baleia morrer. A cadela não morre para alimentá-los como o papagaio, mas por estar fraca e talvez agüentar a retirada. E, talvez ainda, para não tornar a fuga mais difícil já que era tão próxima a eles... Então, Baleia morre para dar esperanças a família e, mais uma vez, Sinhá Vitória se desculpa dizendo para si e para nós que por estar doente, ela não servia mais para nada. E com essa constante busca pela serventia das coisas, talvez Sinhá Vitória questione a própria serventia deles no mundo. |