Sinha Vitória: a saga da mulher sertaneja e
retirante
Carla
de Fátima Cordeiro
Juliana Nicolau Santana

No Brasil, um país de dimensões continentais, a condição
feminina é heterogênea, variando de acordo com o grupo social, a
localidade, a etnia, a religião, etc. Porém, temos como paradigma que
as mulheres que vivem em zonas urbanas, sobretudo nas grandes e médias
cidades, estão num estágio que pode ser considerado mais favorável,
quando comparado com as que vivem em lugares isolados e rurais, onde há
maior resistência à divisão igualitária das relações de poder,
autoridade e saber entre os homens e as mulheres.
Iniciamos indagando: mas o que é ser mulher? Conforme já
mencionamos acima, mulheres diferentes vivenciam experiências
diferentes, logo a definição de mulher não é homogênea, nem
universal, mas é múltipla. Reconhecemos que a sua conceituação
integra a construção social na prática cotidiana das pessoas.
Explicamos, segundo Ridegeway (1997) para uma pessoa relacionar-se com
outra, precisa a priori saber
qual a sua classificação sexual, ficando outros elementos como a
idade, a etnia, os gostos em outra instância, daí a importância da
determinação do sexo.
Através do filme Vidas
Secas, de Nelson Pereira dos Santos, buscaremos abordar as questões
de gênero, de classe, de etnia que permeiam o mundo de Sinha Vitória.
É claro que nessa reflexão não podemos excluir as outras personagens
do grupo familiar: o menino mais velho, o menino mais novo e Fabiano.
Também queremos ressaltar que temos consciência da impossibilidade de
pensar a mulher rural como um todo, nos limites destes parágrafos que
se atêm ao “universo” desta narrativa.
Assim,
nos primeiros minutos do filme, Sinha Vitória é mostrada como uma
mulher forte, é quem carrega mais peso (além de um baú na cabeça,
traz escanchado na cintura o menino mais novo) e quem toma as
iniciativas. Na longa caminhada até achar um lugar onde pudessem
trabalhar e morar, ela segue à frente da família, aparentemente
puxando-os e incentivando-os a continuar a prosseguir. É a personagem
mais falante do filme, reclama da situação em que se encontram, fala
que não vão chegar a lugar algum, mas ao mesmo tempo indica o caminho
que devem seguir. Distribui-lhes comida (farinha), mata o papagaio de
estimação, utilizando-o como alimento, e justifica sua atitude dizendo
que o papagaio “nem sabia falar”.
As
atividades desempenhadas por Sinha Vitória estão ativamente envolvidas
em ajudar na sobrevivência do grupo doméstico. Cuida basicamente de
tudo, dos meninos, arruma suas roupas, seus cabelos, toma conta do
dinheiro, faz as contas e diz a Fabiano quanto deverá receber após
algum tempo de trabalho e o que é possível fazer com o dinheiro ganho.
No
entanto, a preocupação de Sinha Vitória não se limita à sobrevivência
material, conforme podemos observar em diversas cenas: em que demonstra
afetividade em relação aos meninos e à cachorra Baleia. Quando
Fabiano some durante a missa, Sinha Vitória e os meninos sentam e
esperam em frente à Igreja, ao amanhecer ela percebe um grupo de
cangaceiros, então procura esconde-los, trazendo-os junto ao corpo. Em
outro quadro, o menino mais velho pergunta à mãe o que é inferno, ela
responde que é um lugar ruim demais; já Fabiano ao ser indagado sobre
o mesmo assunto, nada responde. Nas últimas cenas ao partirem, fugindo
novamente da seca, Baleia foi sacrificada. Sinha Vitória coloca as
crianças para dentro de casa, procurando protegê-las do sofrimento de
ver a morte de sua cadela.
Chamou-nos
a atenção o fato de que dificilmente Sinha Vitória e Fabiano mantém
um diálogo. Em uma das cenas do filme, eles estão frente a frente, no
entanto, não estabelecem um diálogo sobre algum assunto comum. Cada
qual fala frases esparsas, diluídas, próprias de suas preocupações
subjetivas. Algumas vezes, Fabiano reconhece a posição de Vitória
dentro da família, como quando vai receber do patrão, o valor não
confere com o calculado por sua mulher, ele afirma ao patrão que a
quantia do dinheiro estava errada e
recebe uma repreensão. Sem saída, Fabiano diz que foi Sinha Vitória
quem fez a conta e achava que estava certa, pois “a mulher tem
miolo” .
Na
sociedade brasileira, a domesticidade feminina, a hierarquia de gênero
e a concessão de vantagens à figura masculina não estão comumente
ligados à restrição da mulher em trabalhar ou freqüentar lugares públicos,
ela perpassa outros trâmites como a divisão sexual do trabalho e as
relações familiares.
Ao
mesmo tempo que a família segue um modelo tradicional, a distinção
entre o homem provedor e a mulher dona-de-casa é marcante. Esse
pensamento fica claro quando Fabiano perde parte do pagamento no jogo,
quer dizer, ele não cumpriu sua única obrigação: de trazer comida,
vestimenta e similares para casa e suprir a família. Sinha Vitória o
questiona pois ela tinha vontade de economizar dinheiro para comprar sua
sonhada cama de couro. Fabiano retruca argumentando que ele é quem
trabalha e, portanto, ele tem o direito de fazer o que quiser com o
dinheiro. Logo, as atividades domésticas
exercidas por Sinhá Vitória não são vistas como um trabalho, mas
naturalizadas como obrigação feminina.
Percebemos que a atitude de assumir a
responsabilidade pela execução do serviço doméstico, pelo cuidado
com as crianças, pegar água e preparar o alimentos, entre outras
atividades desempenhadas pela mulher em sua casa, seja no papel de mãe,
de esposa, de filha, de avó ou outra figura feminina, está inserida na
moral do trabalho familiar, entendida como uma obrigação de gênero
decorrente da divisão sexual do trabalho. Desse modo, quase sempre, o
privado aparece como o lugar de proteção, de cuidados da mulher. No
filme, vemos isto através de cenas em que Sinha Vitória cuida das
crianças, prepara os alimentos, faz as contas para o ajuste com o patrão,
providencia a benzedeira para Fabiano e a proteção psicológica dos
meninos nas situações difíceis.
Sinha
Vitória, ao contrário de seu marido, exterioriza seus sentimentos,
reconhece que sua vida é sofrida. Enquanto Fabiano descansa, ela reza
para que a seca não venha, mas logo toma uma atitude, diz a seu marido
que devem ir embora levando o bezerro antes do patrão chegar e, assim
acontece. Mas, em meio às incertezas, chora Sinha Vitória e se
pergunta se um dia vão viver como gente, encontrar um lugar melhor e
dormir em cama couro.
No
início de caminhada rumo a uma possível cidade, Vitória e Fabiano
andam lado a lado, tendo os filhos mais a frente. Nesse momento, podemos
notar em Sinha Vitória um misto de incerteza e esperança, mostrando
que, apesar de todo sofrimento, ela ainda tem sonhos e desejos de que
suas vidas mudarão, morarão em outro lugar, terão terra fértil,
“com roça bonita e fartura”. Ela não quer a mesma vida para os
filhos que, segundo ela diz, só conhecem a desgraça. Os meninos
deveriam aprender a ler, fazer conta, freqüentarem a escola na cidade.
Nesse sentido, Fabiano pensa diferentemente. Ele tem o desejo de ver os
meninos seguirem a sua profissão de vaqueiro.
É
praticamente impossível falar de Sinha Vitória sem levar em consideração
a relação rural-urbano. Movida pela influência da vida urbana, Sinha
Vitória tem sonhos de consumo, como um par de sapatos de verniz e uma
cama de couro, tem esperança que na cidade a vida seria melhor. Ao seu
modo, ela é vaidosa e sonhadora, faz uma roupa nova para ir a festa da
cidade combinando-a com sapato de verniz e admira seu Tomás da
bolandeira, que tinha uma cama de couro, sabia ler nos livros e fazer
conta no lápis. Uma cama de couro como a de seu Tomás, “bonita,
macia, cheirosa e com pano rendado”, era o seu maior sonho de consumo,
aquele possível dentro daquelas condições sociais e históricas em
que vivia.
A
manifestação de novas possibilidades (emprego, terra, escola,
“coisas boas”) pronunciadas por Sinha Vitória, bem como nas cenas
descritas nos vários parágrafos acima demonstram a condição humana
ou desumana das mulheres rurais, que anseiam por uma vida mais digna.
Nos gestos, na fala, no olhar de Sinha Vitória percebemos indignação
e denúncia contra a degradação humana.
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