Fabiano: uma representação do homem pobre ruralOdirlei Dias Pereira “O destino é maior que a morte” - Manuel em Deus e o Diabo na Terra do SolEm sua peregrinação pelo sertão em busca deste “lugar melhor”, a família encontra uma velha casa abandonada, onde decide ficar durante uma estação de chuvas. Um pequeno tempo de fartura se sucede com a chegada desta estação chuvosa. A poesia do grupo musical Cordel do Fogo Encantado retrata a espera desses sertanejos pelo inverno, o tempo das águas: Quando
chove no sertão Mas com a chegada das chuvas, chega também o dono das terras onde Fabiano se aloja. Ao pedir-lhe trabalho, o fazendeiro responde com um “pode ficar”, “deixando” que o vaqueiro “fique” em sua fazenda. Apesar de estar “contratando” os seus serviços, a pobreza absoluta de Fabiano faz com que ele veja neste ato do fazendeiro uma concessão, fato que o coloca a mercê dos seus mandos e desmandos. Fabiano é um homem pobre livre do sertão nordestino, nada tem de seu, a não ser sua força de trabalho. É justamente sua condição de “liberdade” que o amarra a um proprietário de terras. O trabalho de Fabiano consiste em cuidar de uma propriedade que não lhe pertence: é vaqueiro de um fazendeiro. Ele sente-se grato àquele coronel que o emprega temporariamente e, por não possuir nada, torna-se servidor de quem tem, portanto, tem o seu destino determinado por outro. O fazendeiro é o detentor dos poderes de vida e morte sobre os seus agregados e, é claro, é ele quem decide a forma de pagamento: Fabiano cuida do gado e recebe em espécie a quarta parte dos bezerros que nascem. Como observa Walnice Nogueira Galvão (1986) em seu estudo sobre o Grande Sertão: Veredas, o fato de ser pago em espécie, em tese, poderia possibilitar que esse vaqueiro, um dia, se tornasse fazendeiro. Fabiano, como representação do homem pobre rural, ao morar “de favor” em terra alheia, traz implícito o compromisso pessoal com o proprietário da terra. Ele que não possui propriedade, tradição, instrumentos de trabalho, como observa Galvão (1986), passa a viver sobre a dependência absoluta do proprietário-coronel e, posto que é excluído do processo produtivo principal, vive como pode, trabalhando em atividades esporádicas e marginais. O filme nos diz que Fabiano é chefe de uma família nuclear: o pai, a mãe, dois filhos, uma cachorra e um papagaio. Como pai, ele é o responsável por iniciar os filhos na dura vida de sertanejo e por isso as crianças o imitam em seus afazeres, sugerindo assim que no futuro, quando seus filhos se tornarem adultos, serão vaqueiros como ele, já que não possuem outra alternativa e dificilmente conseguem escapar deste destino, como observa Galvão (1986), quando fala da plebe rural presente em Grande Sertão: Veredas. No momento em que a seca volta assolar o sertão, o patrão recolhe sua boiada e a leva para um lugar onde possa sobreviver com pasto e água e, assim, Fabiano fica sem trabalho. O que torna Fabiano vulnerável ao ciclo das secas é sua condição de despossuído, que é o mesmo motivo que o faz ser dominado pelos fazendeiros da região. Não somente os ciclo das chuvas rege o seu destino, a questão fundamental é a propriedade da terra que no tempo das águas faz desse homem vaqueiro e em tempo de seca o faz retirante. É não ser proprietário que o faz migrar, pois como vimos o fazendeiro transfere seu gado para onde haja água e pastagem. O homem pobre de Vidas Secas é diferente do homem pobre criado por Mazzaropi no cinema industrial paulista. Jeca era o trabalhador “manso” das fazendas ao mesmo tempo em que era retratado como esperto e preguiçoso. Por meio de piadas e caretas, Mazzaropi despolitiza a trama de seus filmes, como o faz em “Tristeza do Jeca” (BR, 1961), onde o caipira sofre os mandos e desmandos do coronel para quem trabalha, trazendo para o viés pessoal um problema que é social. Ou seja, a “tristeza do Jeca” que faz alusão o filme, relaciona-se ao seqüestro de seu filho por causa de uma desavença política, mas nunca tange a questão da propriedade da terra. Já o homem de Vidas Secas é um homem com história, trajetória de vida, pequenos e embrutecidos desejos mas repleto de dignidade. Fabiano, o vaqueiro e retirante, ainda não existe como homem, não é agente histórico, não é senhor de seu destino, apesar disto não reage com “caretas” e “piadas” frente as ordens de seu patrão, pelo contrário, sofre, e nos faz sentir o sofrimento do homem despossuído, frente ao proprietário rural. Por meio de Fabiano, vemos então a degradação do homem pobre rural como conseqüência da espoliação econômica que, ao contrário do personagem Jeca, não atrela seu destino a problemas individuais, mas o liga a complexa estrutura fundiária do país. Ainda que na imediatez da vida, isto não seja claro também para o nosso Fabiano. O é, no entanto, para o espectador. De novo na estrada com sua família, é a natureza que parece ser inclemente fazendo com que ele nada possa prever com certeza, parecendo transformar-lhe em um joguete do destino, como nos diz Sófocles na tragédia Édipo Rei “Viver ao acaso, como se pode, é de longe ainda o melhor”. |