O desafio de Nelson Pereira dos Santos: política e cultura no pré 64

Arakin Queiroz Monteiro

 “Só são verdadeiramente homens aqueles que arrancam as algemas da mente humana”
Gorki

O país estava irreconhecivelmente inteligente
Roberto Schwarz

Parte de um projeto mais amplo que pretende discutir diversos aspectos relativos ao filme Vidas Secas, dirigido por Nelson Pereira dos Santos, este breve ensaio busca elaborar um panorama político concernente ao período em que o filme em questão foi produzido.

Antes porém de adentrarmos à nossa proposta, poderíamos questionar qual a relevância de uma abordagem política para compreensão de uma determinada obra artística. Ora, uma obra artística, por mais abstrata que seja, será necessariamente construída num determinado momento histórico e conforme as condições materiais concretas existentes e ao alcance de seu construtor. Em outras palavras, tanto seu conteúdo como sua forma serão elaborados e concretizados dentro de limitações espaço-temporais. Nesse sentido, “concordamos com a teoria que pensa que esta é uma particularidade de toda obra de arte: a de realizar a síntese de seu tempo, compondo, por isso mesmo, a forma mais completa de sociologia. E, dessa perspectiva, tratamos o conteúdo e forma do material artístico como coisas inseparáveis. O conteúdo, como o tema e as questões colocadas a conhecer em primeira instância, e a forma das obras, como o que explicita a mediação entre o artista e seu objeto, como o lugar onde se define o narrador – aquele que constrói as categorias cognitivas sobre um dado conteúdo” (TOLENTINO, 2001, p. 13). Como propõe Gramsci, “arte sem ideologia é vazia, não tem ‘simbolismo’, não tem um referente que a carregue de significado.”

Aliás, o conteúdo em questão torna-se, de certa forma, privilegiado para uma abordagem política uma vez que pertence a um momento do cinema brasileiro em que este, deliberadamente, se propôs a debater ou impor projetos nacionais, canalizando para si a síntese dos debates políticos e sociais da época. Tratava-se portanto de aliar cultura e política num projeto único.

O filme Vidas Secas data de 1963 e o período que estamos nos propondo a observar está compreendido entre os anos de 1960 e 1964. É claro que o período em questão requer um aprofundamento mais amplo para sua compreensão. Entretanto, os primeiros anos da década de 60, representam de certa forma, o ápice de um período de efervescência política no Brasil, que teve início em 1946 com um inédito processo de abertura democrática, terminando no fatídico 31 de março de 1964 com a imposição do golpe militar. O fim da ditadura do Estado Novo, a vitória das democracias liberais na Segunda Guerra Mundial e a influência do americam way of life, marcam a seu modo esse período.

No plano internacional, o planeta encontrava-se politicamente bipolarizado no contexto da Guerra Fria e seus reflexos na América Latina. A abertura política do pós-guerra possibilitou uma maior politização da sociedade, sendo que as organizações de esquerda conquistaram muitos simpatizantes, sobretudo, após o sucesso da Revolução Cubana, vitoriosa em 1959 e declaradamente socialista a partir de 1961. Nas palavras de Denis Moraes em A Esquerda e o Golpe de 64 “O mito do foco revolucionário, revelado em Sierra Maestra, impressionou meio mundo. A revolução era possível! E a esquerda latino-americana pôs as lunetas voltadas para o Caribe...” (MORAES, 1989, p. 31).

Internamente, as massas populares se articularam para melhor se manifestarem. Os trabalhadores rurais, principalmente no Nordeste, liderados por Francisco Julião, formaram as Ligas Camponesas em favor da Reforma Agrária Radical. Em novembro de 1961, durante o I Congresso Nacional de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas, realizado em Belo Horizonte, eternizou-se a célebre frase de Francisco Julião:

 “A reforma agrária será feita na lei ou na marra, com flores ou sangue”

 Com mais de 1.600 delegados de todo país, o Congresso terminou indicando os principais pontos para a Reforma Agrária, representando um sinal inequívoco da ebulição política no campo.

Para Moraes, o período marca “um Brasil agitado, com surtos de renovação em vários setores, contagiado com a possibilidade de direcionar seu futuro a partir de reformas estruturais no presente. Um Brasil em que a política deixava de ser privilégio das elites para penetrar no universo do trabalhador (urbano e rural), do estudante, do padre, do intelectual, do militar, do homem comum.” (MORAES, 1989, p. 16)

Ainda segundo este autor, "a passagem dos anos 50/60, com efeito, nos revela tempos de euforia desenvolvimentista, de acelerada politização da sociedade, de amplos debates sobre a eficácia revolucionária da arte, de explosão de reivindicações dos trabalhadores urbanos e rurais, de sonhos com uma Sierra Maestra que nos livrasse do imperialismo, do latifúndio e da miséria. Um momento histórico para as novas gerações: tomar consciência do povo brasileiro, com toda sua carga dramática. E agir para mudar a realidade. Era uma questão de afirmação nacional. (MORAES, 1989, p. 24)

Moraes observa que “a politização no meio estudantil sublinha o ativismo da União Nacional dos Estudantes (UNE), da União Brasileira de Estudantes Secundaristas (UBES) e na União Metropolitana de Estudantes (UME). O cardápio de lutas da UNE incluía itens como a reforma universitária e educacional, limitações ao capital estrangeiro, combate ao imperialismo, política externa independente, indisfarçável simpatia por Cuba, reforma agrária, efetiva participação dos trabalhadores nas decisões do poder público”. (Idem, p. 47-48)

A produção cultural brasileira na década de 1960 ficou marcada pelo engajamento político dos artistas e refletiu os embates políticos travados no país. Essa prática começou no CPC – Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (UNE) -  e chegou a vários segmentos artísticos. A música, a literatura, o teatro, o cinema, a arquitetura foram atingidos pela união entre arte e política. Nesse sentido, havia na produção e no consumo cultural um grande interesse por tudo que era nacional. O cinema brasileiro da década de 1960 buscou oferecer uma outra opção de arte cinematográfica ao público, já que nossas telas estavam praticamente monopolizadas pela linha cinematográfica hollywoodiana, que seguiam a linha da cultura de massa.

A produção teatral engajada também floresceu, impulsionada pelos grupos Oficina e Arena. Teatrólogos, entre os quais se destacam Oduvaldo Vianna Filho, Plínio Marcos e Gianfrancesco Guarnieri, escreviam textos que investigavam as questões sociais e faziam sérias críticas à elite brasileira.

Em todas as formas de expressão artística se repetia uma preocupação em olhar de frente os problemas brasileiros, em denunciar as dificuldades vividas pela população. Ao lado de trazer à tona todos os males, havia uma grande confiança na nossa capacidade de vencer as dificuldades, mas sem deixar de lado nossas características. Ao mesmo tempo em que a esperança era reavivada, a brasilidade era reafirmada e assumida em todos os seus males. Pode-se perceber  que havia, em uma parcela da sociedade brasileira, uma séria recusa da padronização cultural que os Estados Unidos difundiam pelo mundo.

Marcelo Ridenti em seu livro Em Busca do Povo Brasileiro, defende que:

"o romantismo das esquerdas não era uma simples volta ao passado, mas também modernizador. Ele buscava no passado elementos para construção da utopia do futuro. Não era, pois, um romantismo no sentido anticapitalista prisioneiro do passado, gerador de uma utopia irrealizável na prática. Tratava-se de romantismo, sim, mas revolucionário. De fato, visava-se resgatar um encantamento da vida, uma comunidade inspirada no homem do povo, cuja essência estaria no homem camponês e no migrante favelado a trabalhar nas cidades" (RIDENTI, 2000, p. 25).

 Como observa Roberto Schwarz em Cultura e Política, 1964-69, “no Rio de Janeiro os C.P.C. (Centro Popular de Cultura) improvisavam teatro político em portas de fábricas, sindicatos, grêmios estudantis e na favela, começavam a fazer cinema e lançar discos. O vento pré-revolucionário descompartimentava a consciência nacional e enchia os jornais de reforma agrária, agitação camponesa, movimento operário, nacionalização de empresas americanas, etc. O país estava irreconhecivelmente inteligente.” (SCHWARZ, 1992, p. 69)

Note-se que de 1960 a 1964, “a política brasileira não se limitava mais ao Parlamento – tornara-se algo bem abrangente. A disputa pela hegemonia ultrapassara a esfera partidária para penetrar nos movimentos sociais. Essa ampliação da participação popular no processo político denotou um conjunto de pressões reivindicatórias das camadas subalternas. As propostas nacionalistas, desenvolvimentistas, antiimperialistas e pelas reformas de base encontravam, nesses segmentos, uma audiência crescente.” (MORAES, 1989, p. 34). Nesse sentido, “a reorganização do movimento sindical, ainda nos anos JK, iria acentuar-se no entreato janista e, com ênfase, a partir da ascensão de Jango à Presidência da República.” (Idem, p. 35). A multiplicação das greves, por exemplo, pode ser medida nesta comparação com os anos JK: de 1958 a 1960, houve 177 greves; nos três anos seguintes, 435. (Idem, p.38)

Num comício para 150 mil pessoas a 13 de março de 1964, na Central do Brasil, Rio de Janeiro, o Presidente João Goulart, lançou oficialmente as reformas de base. Anunciou encampações de refinarias e a desapropriação de terras. O radicalismo político contrapôs o populismo e o grande capital. Em contrapartida, em 6 dias após o comício (19 de março), 500 mil pessoas em São Paulo marcharam pela “Família, com Deus e pela Liberdade”. Foi a resposta da classe média, da burguesia, dos setores conservadores da Igreja Católica, apoiada pelos militares, pedindo a saída de Jango. Nas palavras de Moraes: “500 mil pessoas tomando o centro de São Paulo, da República à Praça da Sé. Milhares de senhoras bem vestidas, delegações de todo o Estado, transportadas em 2.500 ônibus; freiras contritas rezando seus terços. No coração, o pavor da ‘comunização do país’. O inimigo afinal, era um ‘monstro’ de vários tentáculos: ateu, corrupto, insidioso, bolshevista, cubano, imbuído da firme determinação de solapar as liberdades, destruir a família e expropriar a propriedade de todos”. (MORAES, 1989, p. 149)

Por fim, em 31 de março começou o movimento militar que depôs o governo João Goulart. Ao assumirem o poder, os militares “silenciaram” toda a efervescência dos movimentos populares que marcaram um momento histórico do país e em que a arte assumiu um papel de grande criatividade e engajamento político, indo além (tanto em forma quanto em conteúdo), dos interesses da indústria cultural contemporânea.

Bibliografia

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