POBRES, REBELDES E OUTROS HERÓIS DE FOGO MORTO

 

I. Dom Quixote sertanejo: o Capitão Vitorino

 

Silvana José Benevenuto

     A terceira parte do livro Fogo Morto fecha a tripartite do romance com destaque ao personagem Vitorino Carneiro da Cunha, que diverge dos demais protagonistas da obra – mestre José Amaro e o capitão Lula de Holanda, que representam personagens solitários e impotentes – em virtude de seu caráter forte e determinado, características que somente serão reconhecidas pela população do Pilar na terceira parte do livro, devido a sua intensa luta em defesa dos injustiçados, sendo antes menosprezado e maldosamente apelidado de Papa-Rabo.

 

    Vitorino é parente dos grandes da terra, tem um filho na Marinha, é um homem branco e possui título de capitão – comprou a patente, mas não se sente rebaixado por isso, pelo contrário, admite a todos e exige que seja tratado com respeito: – Dobre a língua [...] Capitão Vitorino. Paguei a patente foi para isso” (REGO, 1997, p. 25, grifo nosso).

 

    Apesar de ter vindo de uma família rica, Vitorino representa um personagem decadente: é pobre e sustentado por sua esposa, Sinhá Adriana, que trabalha na castração de galinhas, “só ela por aquelas bandas tinha mão e ciência para aquele serviço” (REGO, 1997, p. 37). Vitorino Carneiro da Cunha andava sempre montado em seu cavalo, sua “égua rudada”, e munido de seu inseparável punhal. Era sempre menosprezado pelo povo do Pilar: os meninos da rua o desrespeitavam com insultos - “Papa-Rabo! Papa-Rabo!” - e, inclusive seu compadre, José Amaro, o via com desprezo (somente passando a ter admiração por Vitorino quando se vê abandonado e impotente, sem forças para agir). Como é possível notar na passagem:

 

 

Vitorino saltou da égua, amarrou o cabresto na cerca e chegou-se para perto da tenda. O mestre José Amaro olhou-o com desprezo. Sempre lhe causava mal estar aquela companhia de um pobre homem que não se dava a respeito. Era demais aquela vida sem rumo, aquele andar de um lado para o outro, sem fazer nada, sem cuidar de coisa nenhuma (REGO, 1997, p. 26, grifos nossos).

                      

 

Da mesma forma, “Vitorino olhava para o compadre como para um inferior. Era um seleiro, um mestre de ofício que gente branca como ele não devia levar em conta” (REGO, 1997,  p. 26).

 

Vitorino, com sua mania de supremacia e autovalorização, nunca se menospreza, nem se preocupa com suas condições materiais, está sempre se imaginando superior. É forte, é valente, capaz de lidar com qualquer pessoa e qualquer situação, afinal, Vitorino Carneiro da Cunha é “homem pra tudo”, não aceita desaforos, luta pelos seus ideais, pelo cumprimento da lei e da justiça.

 

Mesmo com todos os insultos à sua pessoa, como a dos meninos da rua, Vitorino acredita que tudo não passa de perseguição, uma vez que, engajado na política, faz parte do partido de oposição do governo de seu primo José Paulino – quer acabar com “os governos podres” e quer ver José Paulino pagando impostos.

 

É por esse motivo, que Vitorino costuma ser comparado com o Dom Quixote rural brasileiro, por ter “o mesmo desprezo pelas condições materiais, a mesma coragem maluca e, sobretudo, a mesma capacidade de ver as coisas segundo a deformação do ideal, e não segundo o que realmente são” (CANDIDO, 1992, p. 65).

 

Com toda sua obstinação, Vitorino sempre toma providências em favor dos injustiçados: enfrenta Lula de Holanda, para que não expulse o seu compadre, Zé Amaro, de suas terras; adiante, defende Lula de Holanda, enfrentando bravamente Antônio Silvino que invadira o engenho Santa Fé; confronta-se com a força pública desacatando à autoridade – atitude que faz com que seja preso e torturado, obtendo liberdade por proteção de seu primo, José Paulino. 

 

Todos esses episódios dão prestígio a Vitorino que passa a ser respeitado pelo povo do Pilar: seu compadre, “perdido, sem filha, sem mulher, só no mundo como se fosse um condenado” passa a admirar Vitorino, que não fraquejava jamais, “mais homem do que ele” (REGO, 1997, p. 192); os meninos que o insultavam passam a respeitá-lo, afinal, “só mesmo um homem de muita coragem faria o que o velho fizera! [enfrentar Antônio Silvino] Todos os homens corriam dos cangaceiros, não havia quem ousasse levantar a voz para o dono de tudo. E assim o velho já não era aquele Papa-Rabo que maltratavam impiedosamente.” (REGO, 1997,  p. 250 ).

 

Portanto, são essas características heróicas e marcantes que fazem de Vitorino Carneiro da Cunha um personagem forte, personagem que traça um paralelo social entre o mestre José Amaro e o capitão Lula de Holanda:

                   

 

Entre o senhor de engenho e o mestre de ofício que agonizam – o coronel apagando o seu fogo, o mestre se suicidando – o capitão Vitorino Carneiro da Cunha se ergue como um triunfador. Também ele está em decadência porque é de família senhoril e cai lentamente para o povo. É uma ponte entre um estrato social e outro (CANDIDO, 1992, p. 65, grifo nosso).

 

 

É dessa forma que Vitorino Carneiro da Cunha destaca-se na obra, com sua inocência, valentia e coragem, ou nas palavras de Antonio Candido, como “um herói louco, como o puro herói tem que ser. Por isso, enquanto os outros declinam e caem, entregando-se ao desespero, ele cresce, avulta”. (CANDIDO, 1992, p. 66).

 

 

II. Os homens negros, resistência e cooptação em Fogo Morto

Carla de Fátima Cordeiro

 

Se na primeira parte do romance as referências aos homens negros tratam dos libertos que ficaram na região ou nos engenhos exercendo uma profissão específica ou fazendo serviços gerais, na segunda parte, o trabalhador negro exerce uma função mais contundente. Símbolo do poder dos proprietários, o negro-escravo ocupará uma posição importante ainda que pouco nos será dito sobre eles além do relato de suas ações desencadeadoras de mudança no rumo da história dos personagens.

 

Quando inicia a sua segunda parte, o narrador volta no tempo, tratando o Engenho Santa Fé na época da escravidão, quando este era comandado pelo seu fundador, o Capitão Tomás Cabral de Melo. Capitão Tomás tinha fama de ter muito pulso e coragem para o trabalho. Dizia-se que os negros de seu engenho só comiam uma vez por dia, levavam grandes castigos e não freqüentavam festas. Segundo o próprio Capitão, negro era só para trabalho, pois ele que não era negro vivia fazendo a sua “obrigação” dia e noite. Segundo o narrador: “Negro do Santa Fé era de verdade besta de carga” (REGO, 1997, p. 123). Mas, às vezes, alguns fatos raros os faziam, de certa forma, integrados à vida da família, como nas horas em que todos se reuniam para ouvir Amélia, filha mais velha de Tomás, tocar piano: “Mãe, pai, e negros participavam de uma existência bem diferente da que viviam. Outra vida, outra força mandava naquela gente enfeitiçada” (Rego, 1997, p. 125). Era como se a música de Dona Amélia fosse capaz, por alguns momento, de transformar a condição trágica em que viviam e a diferença social entre escravo e senhor, uns raros momentos de enfeitiçamento: “as negras diziam que a menina tinha umas mãos que eram como se fossem uma vara de condão” ( REGO, 1997. p. 125).

 

A vida de muito trabalho de dona Mariquinha, mulher de Tomás, a levava ela a se identificar com a vida escrava: “todos em sua casa não deviam ser como ela fora, só do trabalho grosseiro, da vida como de negro cativo” (REGO, 1997, p. 124). Tanto para Capitão Tomás, quanto Dona Mariquinha trabalho era coisa de negro, apesar de serem eles mesmos grandes trabalhadores. O que não queriam era este destino para suas filhas.

 

Com o passar do tempo, capitão Tomás ia ficando velho e sua filha Amélia não se casava e, para piora, sua filha Olívia ficou gravemente doente. O capitão muito abalado com a doença de sua filha virara outro homem e envelhecera rapidamente. “todos da casa já tinham se conformado, menos o capitão Tomás” (REGO, 1997, p.128). Até quando um negro fugiu de sua propriedade, o moleque Domingos “muito boa pinta, de 18 anos, de saúde de ferro”. Com esse fato, capitão Tomás ressurgiu para o seu engenho, com coragem e ânimo foi atrás de sua peça: “tudo para ele se sumira, só aquele negro dava força a vida do capitão” (REGO, 1997, p. 128). Com a ajuda do Barão de Goiana, Domingos reaparece no engenho e, pela primeira vez no Santa Fé, um negro seria mandado para o tronco. “O capitão Tomás Cabral de Melo não era mais o homem triste com a doença da filha Olívia. Os gritos de Domingos não doíam nos seus ouvidos, não machucavam o seu coração” (REGO, 1997, p.129). Ou seja, na decadência o poder de mando parecia ressurgir na figura do senhor mostrando ao mundo quem era dono da vida e da morte de outros homens.

 

Tempos depois, o primo Lula se casa com Amélia para a alegria do Engenho Santa Fé. No entanto, logo o Capitão se incomoda com a passividade e lordeza de seu genro que não se importava com os assuntos do engenho. Tomás fica extremamente decepcionado com Lula e preocupado com o futuro do Santa Fé sem sua presença. Então, Domingos foge de novo e desta vez leva consigo dois cavalos. Mesmo velho, Tomás tomou frente da questão e foi buscar o que era seu, Lula foi junto. Mas acabaram não conseguindo trazer o negro de volta.

 

Depois do ocorrido, Lula e capitão Tomás sentiam-se humilhados. Lula refletiu sobre sua vida, o que ele fora até ali e o capitão Tomás perguntava-se “como poderia dormir um senhor de engenho que não tinha coragem de arrancar um negro de sua senzala das mãos de um ladrão de cavalos” (REGO, 1997, p. 138)? O capitão passa a viver como se estivesse doente e, mesmo depois que um capitão-do-mato apareceu com Domingos, ele não deu importância. Sentia-se humilhado, derrotado, sem honra, sem força: tinha sido insultado por um “camumbembe” qualquer e, portanto, não podia gritar com negro nenhum:

 

 

Os partidos de cana, a escravatura gorda, os roçados de algodão. Tudo se fora para a do senhor de engenho[...].Não ficaria mais bom, pensava a mulher. Estava morto para sempre (REGO, 1997, p. 139).

 

 

A autoridade, a ‘escravatura gorda’, representava muito para Capitão Tomás, tanto que quando sua autoridade é desafiada, com a fuga de Domingos, e ele não consegue superar a situação, entra em uma crise profunda que acaba levando-o a morte. Domingos é a personificação da resistência, da rebeldia escrava, desafiando o poder do senhor de Engenho com a recusa à desobediência passiva.

 

Depois da morte de seu Tomás e de dona Mariquinha, o agora Capitão Lula toma  a frente do Santa Fé. Lula era muito rígido e não queria vadiação no engenho, todos os negros teriam que rezar Ave-maria e não poderiam mais rezar para Cosme e Damião. Lula maltratava muito os negros. Quando chega a abolição da escravatura, os negros do Santa Fé, comemorando, foram para outros engenhos, menos o boleeiro Macário que adorava o oficio, e “o povo cercava os negros libertos para ouvir histórias de torturas” (REGO, 1997, p. 148). Dona Amélia não se conformava com a partida dos negros de seu engenho, pois os do Santa Rosa haviam ficado na senzala. Sem os negros o Santa Fé entra em crise.

 

Com o passar do tempo, Lula se torna um homem extremamente religioso e tinha como companheiro de reza Floripes “que fora filho de escravo, seu afilhado, e que com tanta devoção compreendia seus deveres. Era moleque de bom coração, de natureza branda.” (REGO, 1997, p. 169). Mas, segundo o narrador,  todos no engenho e na cidade desconfiavam de Floripes por causa se seus ‘jeitos macios’, inclusive Amélia. Cheio de mesuras e cavilações, Floripes agradava Lula. Dona Amélia não sabia o que acontecera com o marido que, outrora tão indiferente com os escravos, parecia outro homem no trato com Floripes de tanto que viviam “apegados, tão íntimos”: 

 

 

Por toda parte corria das rezas que seu Lula fazia em casa como de marmota de feitiçaria. Ele dera para boato com intuito de iludir o povo. O moleque Floripes, seu afilhado, era negro de catimbó. Via-se pelo olhar que ele tinha, pelo jeito macio de falar, pelos dengues, pela cavilação, que aquele negro não era boa coisa.(REGO, 1997, p. 175).

 

 

Floripes é o sujeito cooptado que assume a lógica do dominador e leva vantagem nessa situação. Mas, para o povo, ele tinha feito catimbó, ou seja, feitiçaria para conquistar a confiança de Lula.. Na relação entre os dois há insinuações e suspeitas. Enquanto ressalta-se o jeito “brando” e “macio” de Floripes, suas cavilações, seus dengues e outros atributos femininos, de Capitão Lula fala-se sempre na falta de pulso para as coisas de terra, faz-se oposição ao jeito rude do velho Capitão Tomás que o considerava cheio de lordeza e, em certo momento, diz-se que na Igreja, assumindo a feição mais piedosa do mundo, “rezava como uma devota”. Nestes momentos, falam variadas vozes, como um vozerio vindo do povo do Pilar.

Assim, em sua decadência, o engenho Santa Fé ficaria conhecido como um engenho de maldição.

 

 

Passarinho e Floripes: o destino dos libertos

 

Na terceira e última parte do livro destacam-se Floripes e José Passarinho. Essas duas personagens têm fama oposta: Floripes, aparece para o povo e para o narrador como sendo interesseiro e mau caráter. Passarinho, entretanto, é apresentado como uma pessoa sensível, companheira e ingênua.

 

    José Passarinho começara a fazer companhia para mestre José Amaro, depois da ida da sua mulher Sinhá para casa de Vitorino e da ida da sua filha Marta para um sanatório. Dormindo na casa do mestre e realizando tarefas caseiras, segundo José Amaro, Passarinho parecia outro homem, não bebia mais. “Era um bom negro” pensava o seleiro: “Via- o sujo, de pés cambados, de olhar quase morto e mesmo assim o julgara mais feliz do que ele” (REGO, 1997, p. 182 ).

 

Passarinho, como o próprio nome sugere, vivia cantando com uma voz magoada e triste as histórias que ouvira desde pequeno, algumas sobre mágoas de amor, outras sobre a decadência dos engenhos e também os famosos versos em cordel da sagas medievais que se espalharam no nordeste. Sua cantoria chamava a atenção de Amaro: as músicas faziam-no recordar sua boa infância em Goiana e, às vezes, abrandavam seu ódio de Floripes.

 

Capitão Vitorino não gostava de Passarinho, muito menos que fizesse companhia a seu compadre José Amaro. Segundo Vitorino, ter um negro dentro de casa “é  mesmo que morar com um porco” (REGO, 1997, p. 188). Quando via Vitorino, Passarinho pedia-lhe um cigarro e, mesmo com uma primeira negativa – “não tenho cigarro para vagabundo” –, continuava insistindo até acabar ganhando o seu cigarro.

 

José Passarinho, junto com Mestre Amaro, foram presos por suspeita de envolvimento com o cangaço. No caminho para a cadeia, Passarinho apanhou muito: uns soldados “empurraram Passarinho como se sacudissem um porco” (REGO, 1997, p. 236). que, de vez em quando, soltava um gemido. Quando chegou na cela Passarinho deitou-se no chão e dormiu como um bicho. “Era uma chaga. A roupa suja cobria o seu lombo ensangüentado” (REGO, 1997, p. 236). Capitão Vitorino intercede pelos presos e leva uma surra dos policiais, Passarinho ao vê-lo apanhando, chorou “como um menino”.

 

Quando saem da cadeia, Mestre Amaro, cego Torquato e Passarinho, este, maravilhado, ria com o tempo: “Passarinho ia andando no passo trôpego, com os pés espalhados como de pato. Pegava nas folhas de árvore, sentava-se no chão, na terra úmida” [...] Tudo era dele. Era dono de tudo[...] Iam calados com Passarinho quase correndo na frente” (REGO, 1997, p. 250). Amaro ficou admirado com a alegria de Passarinho, nunca tinha pensado que Passarinho tivesse alma tão grande. Tempos depois é Passarinho quem vai a casa de Vitorino para informar sobre o suicídio de Mestre Amaro.

 

Passarinho como dito antes representa o bom, ele mesmo depois abolição da escravatura  volta ser uma espécie de ‘escravo’ , trabalha de graça para o mestre Zé Amaro, não guarda mágoa de ninguém, como é mostrado nas partes em que é maltratado por Vitorino, vive cantando e mesmo depois de ter sido preso e ter apanhado na cadeia é o mais feliz e satisfeito.

 

Segundo Amaro, ele teria sido expulso da casa que seu pai construíra, porque “um negro ordinário fora inventar mentiras para um senhor de engenho de miolo mole” (REGO, 1997, p. 183). O ódio de Amaro era tanto que tinha vontade de matar Floripes. A má fama de Floripes era geral, não gostavam dele. Até José Passarinho se ofereceu para dar “um jeito” em Floripes: “Eu sou um traste, mas precisando de mim... A gente não pode é agüentar peitica dum vivente em cima de uma criatura. Este negro tem parte com o fute. Ele anda de reza com ele” (REGO, 1997, p. 192 ) disse a Amaro. Manoel do Ursula, ao saber da expulsão de Amaro do engenho diz:

 

 

O negócio é esse negro. Olhe que ele tem outro afilhado, o negro José Ludovina, morador do engenho Santa Rosa, que me disse outro dia: ‘O meu padrinho devia dar um paradeiro em Floripes’. Todo mundo está vendo aquilo no Santa Fé não anda direito[...] Até disseram que D. Amélia já não botou o bicho para fora porque mataria o marido de desgosto (REGO, 1997, p. 193).

 

 

Capitão Antônio Silvino mandara um bilhete para o Santa Fé dizendo que Amaro podia ficar no engenho enquanto quisesse. Floripes atribuía tudo a Amaro e dizia que o mestre armava uma desgraça ao povo do Santa Fé. Floripes fugia do mestre Amaro quando podia pois, estava ciente que se Amaro o encontrasse aconteceria uma desgraça.

 

Aparentemente Floripes tinha um certo poder de influência no Santa Fé; uma negra da cozinha se queixava que “o negro Floripes vivia de sala como gente. O velho dava importância a aquela peste” (REGO, 1997, p. 221). Até com ela o negro viera com conversa de querer mandar. É notável que a cozinheira é mostrada como uma pessoa que, como negra, sabe qual é o seu lugar, e que se incomoda com Floripes, pois segundo ela, ele não saberia ocupar-se do lugar que lhe cabia. D. Amélia, que não gostava de Floripes, era influenciada por ele a respeito de Amaro dizendo que o mestre ficava falando mal de Neném, sua filha.

 

A amizade e a conversa em voz baixa de Lula com Floripes deixava Amélia perturbada. Floripes não saía dos pés do Capitão Lula. Era uma dedicação de “cachorro fiel”. Quando rezava, a voz de Lula era de tom humilde que não era seu. Mas, de repente, sua voz ficava agressiva e Floripes acompanhando tudo, “mansinho, dócil, de olhos no chão e mãos no peito”. Amélia achava que Lula se acabava, destruía-se. Ou seja, equiparava-se à condição do pobre negro liberto. Um modo de deixar transparecer que finda a escravidão, a vida dos negros livres era cercada das heranças de mando, de preconceito, de prevenções e agressões que julgavam consentidas pelo simples fato de que os homens que ali estavam tinham sido peças um dia, propriedade dos senhores, confirmação das suas riquezas. Vez ou outra surgia um doido como Vitorino que se colocava na defesa de um negro pobre livre como Passarinho. Mas, mesmo assim, parecia que não deixaria de humilhá-lo por isso. Passarinho, a boa alma, parecia não se importar.

 

 

III. Heroínas silenciosas: as mulheres no mundo patriarcal de Fogo Morto

Érica Ribeiro Magi

 

As mulheres no romance Fogo Morto assemelham-se demasiadamente entre si, independentemente da posição social que ocupam nesta sociedade patriarcal. Temos mulheres que exercem o papel de filha, dos poderosos ou dos homens pobres, e as que exercem o papel de esposa: dos coronéis, do seleiro, do prefeito e do quixotesco Vitorino Carneiro da Cunha, homem pobre livre, protegido e parente dos grandes da terra.

 

Há uma desafiadora simetria entre a sofredora filha de José Amaro, Marta, e as duas filhas dos senhores de engenho do Santa Fé. O velho Capitão Tomás tivera Olívia, que enlouquecera, e seu substituto Coronel Lula, tinha em casa a cada vez mais taciturna Neném. A pobre Marta vai enlouquecendo no decorrer da narrativa enquanto a vemos constantemente maltratada e exposta ao ridículo pelo pai, que não se conforma pelo fato de que ela não tenha qualquer pretendente:

 

 

O mestre José Amaro, arrastando a perna torta, foi se chegando para a mesa posta, uma pobre mesa de pinho sem toalha. E comeram o feijão com a carne-de-ceará e toicinho torrado. Para o canto estava a filha Marta, de olhos para o chão, com medo. Não deu uma palavra, só falava o mestre:

- [...] Tenho esta filha que não é um aleijão.

- Zeca tem cada uma ... Deixa a menina.

- O que é que estou dizendo demais? Tenho esta filha, e não vivo oferecendo a ninguém (REGO, 1997, p. 13).

 

 

No decorrer de toda a primeira parte do romance, observa-se que o narrador não dá voz, ou simplesmente fala, à Marta, exceto se pudermos contar com os momentos de choro. Normalmente, sabemos dela porque o mestre ou D. Sinhá, sua mãe, pensam ao seu respeito: “A filha continuava chorando como se fosse uma menina. O que era que tinha aquela moça de trinta anos? Por que chorava, sem que lhe batessem?” (REGO, 1997, p. 16).

 

Ou seja, nas relações sociais do decadente mundo do engenho canavieiro, uma mulher sofreria violência física e simbólica se não cumprisse o seu clássico papel: deixar de ser filha para ser promovida a esposa de algum bravo homem. Se fugisse à esta norma patriarcal perderia o respeito e a sua ‘utilidade’, constituída em dar filhos e herdeiros aos seus homens. Perderia a razão de ter vindo à este mundo construído por homens “macho[s], de sangue quente[s], de força nos braço[s]” (REGO, 1997, p. 16).Sinhá, mulher de Zé Amaro, não prestava para nada porque, além de lhe dar uma filha que era manteiga derretida, lhe negara um filho homem a quem pudesse ensinar o ofício. Entretanto, como que burlando os heróis machos, o narrador nos conta em segredo que as mulheres, eram o que restavam de esteio no meio de toda aquela decadência.

 

As filhas do velho Capitão Tomás, Amélia e Olívia, foram educadas no colégio de freiras do Recife. O pai almejava “fazer de sua família gente de verdade. Não queria mulher dentro de casa fumando cachimbo, sem saber assinar o nome, como tantas senhoras ricas que conhecia” (REGO, 1997, p. 123). Capitão Tomás queria diferenciar-se dentre os outros senhores de engenho que, segundo ele, deixavam suas filhas na ignorância. É interessante notar que apesar de o Capitão ser um homem também autoritário, escravista, trata com certa delicadeza as filhas, querendo fazer delas “moça[s] de trato, de muitas leituras, sabendo fazer sala com distinção” (REGO, 1997, p. 127).

 

Olívia, a filha mais nova, aos 17 anos enlouquece no Recife e mais tarde retorna ao Santa Fé, perturbando a ‘tranqüilidade’ da casa-grande com seus gritos. Amélia, a filha mais velha, não enlouquece, volta de Recife e enche de orgulho o pai:

 

 

Amélia voltava do colégio, moça como não havia na Várzea, cheia de prendas, doma de muito saber. Mas foram-se os anos, e o capitão Tomás tinha uma mágoa. Por que não se casara a sua filha mais velha ? O que faltava para encontrar um marido na altura de seus merecimentos? Não era feia, tudo teria para ser uma esposa completa (REGO, 1997, p. 125).

 

    Amélia seguindo as exigências do pai e também da mãe, casa-se com Luís César de Holanda Chacon, ou melhor, com o futuro Coronel Lula que “era um rapaz cerimonioso, de boa aparência, trato fino” (REGO, 1997, p. 126), vindo de Recife. Mas será que na capital os homens eram realmente finos e não autoritários? Dona Mariquinha, mãe de Amélia, admira demais, neste momento, o genro por ele estar sempre próximo e ser carinhoso com a mulher, diferente de seu marido Tomás:

 

A mãe achava bonito tudo aquilo. Assim devia ser um marido, homem que vivesse perto da mulher, como gente, sem aquela secura, aquela indiferença de Tomás. Felizmente que a sua Amélia encontrara um homem de uma natureza tão boa, tão amorosa. As negras elogiavam os modos do jovem senhor. Parecia uma estampa de santo, com aquela barba de São Severino dos Ramos, com aqueles modos de fidalgo, todo pegado com a mulher como só se via na história de príncipes e de princesas (REGO, 1997, p. 131).

 

 

    Com a doença de Olívia e a fuga do trabalhador escravo Domingos, Capitão Tomás adoece profundamente e, até a sua morte, Dona Mariquinha é quem comanda o engenho Santa Fé. Dona Mariquinha sempre esteve, como dizem ‘por trás do marido’ e, segundo o narrador ela era a metade do esforço do Capitão. “Cuidava ela dos negros, cosia o algodaozinho para vesti-los, fazia-lhes o angu, assava-lhes a carne ” (REGO, 1997, p. 125). Porém, com a morte do sogro, o nosso príncipe, Coronel Lula, ‘toma’ o Santa Fé de D. Mariquinha, demonstrando como Capitão Tomás já havia notado, nenhuma habilidade no trabalho, revelando-se um homem cruel com a própria Amélia. Então, sabemos por Dona Mariquinha que teria sido melhor que ela tivesse se casado com um camumbembe qualquer: 

 

 

Agora sabia que não seria feliz com aquele homem. Tomás era homem duro, sem agradar, sem muita conversa, mas tinha coração generoso. Aquele Lula, todo de mesuras, todo não-me-toques, tinha gênio perigoso. Muito sofria uma mulher casada com um marido assim. As negras compreendiam os sofrimentos da senhora. E todas elas, quando falavam do seu Lula, já era como se se tratasse de inimigo (REGO, 1997, p. 142).

 

 

    Com o nascimento da primeira filha, Coronel Lula só tinha olhos para Neném, somente ela conseguia “[amansar a fúria] do novo senhor” (REGO, 1997, p.146). E, como Capitão Tomás almejou para Amélia, Lula não quer que Neném se case com um camumbembe, ou seja, um homem pobre, sem pomposos sobrenomes de “estirpe”. Quando descobriu que Neném estava “engraçada” pelo promotor do Pilar, que era filho de alfaiate, ficou enfurecido: 

 

 

- Namorar com um camumbembe, uma filha minha na boca da canalha do Pilar. Isto eu não permito, Amélia. Amélia, venha cá com esta menina.

Amélia entrou chorando na sala, e viu a cara de ódio de seu Lula.

- Chama esta menina aqui.

Neném surgiu na porta da sala, com a cabeça baixa, ainda aos soluços.

- Por que tu choras, menina? Por que este choro, hein? Quem te bateu, menina? Não me casa com camumbembe, hein? Prefiro a tua morte (REGO, 1997, p. 160-161).

 

 

    Neném não tem permissão para se casar com ninguém, enfim acaba tornando-se melancólica e lúgubre. As semelhanças entre Marta, Olívia e Neném são explícitas. Os pais, José Amaro, Capitão Tomás e Coronel Lula, respectivamente, independente de serem possuidores de bens ou não, agem de maneira cruel, autoritária e opressora para com as filhas, formados que são na cultura patriarcal, onde o poder pátrio manda e desmanda no restante da família.

 

    A relação que as esposas estabelecem com os maridos é entretanto, bastante interessante. De maneira geral, são mais práticas e racionais do que os mesmos e, apesar de quase não receberem demonstrações de carinho, não se calam quando precisam defender suas filhas ou dizer o que pensam.

    Sinhá, esposa de José Amaro, ouve sempre o marido feroz, depois de tê-lo mandado calar a boca:

 

- Cala a boca, Zeca! A gente não está aqui para ouvir besteira.

- Eu não digo besteira, mulher. Se não quiser me ouvir que se retire. Estou falando a verdade. É só isto que me acontece, ouvir mulher fazer malcriação.

Aí o mestre José Amaro levantou a voz.

- Nesta casa mando eu. Quem bate sola o dia inteiro, quem está amarelo de cheirar sola, de amansar couro cru? Falo o que quero, seu Laurentino. Isto aqui não é casa de Vitorino Papa-Rabo. Isto é casa de homem (REGO, 1997, p. 14).

 

 

    Mestre José Amaro que se recusa ser dominado por senhor de engenho, que escolhe para quem trabalha, não tolera a interferência de Sinhá nos diálogos e a sua frase para apropriar-se do poder novamente e pôr fim à discussão é: “Nesta casa mando eu”, explicitando assim todo seu machismo e orgulho.

 

    Adriana, mulher de capitão Vitorino, aguenta as mesmas agruras da comadre, está sempre preocupada com as travessuras do marido. Várias vezes é ela quem salva a sua pele: quando é preso, quando apanha do cangaceiro Antonio Silvino, quando é agredido pelo tenente Maurício. Adriana é toda preocupação com Vitorino, que considera uma criança:

 

 

Vitorino se zangara com a notícia de que o filho pretendia levar a família para o Rio. Seria para todos uma salvação. Mas ele não deixaria a vida que levava. Era uma criança, sempre o mesmo, com as manias, a preocupação de parecer o que não era. Deus o fizera assim e ninguém desmanchava aquele destino. Mas como poderia abandonar o marido? Como deixá-lo só, entregue a sua extravagância ? Ir com o filho era a sua maior alegria, o seu desejo. Mas Vitorino (REGO, 1997, p. 217)?

 

 

    Não podemos esquecer de Dona Inês, esposa do prefeito Napoleão, que não entra em cena para enfrentar o marido, mas sim o cangaceiro Antonio Silvino que invade e saqueia a sua casa. Nota-se que é interessante uma mulher manter a superioridade do olhar, a frieza frente ao cangaceiro que impõe medo aos Coronéis José Paulino e Lula:

 

 

Mas dona Inês, a sua mulher, recebeu-os com uma coragem de espantar. O capitão Antonio Silvino pediu as chaves do cofre a ela, com o maior sangue-frio, foi-lhe dizendo que tudo que era de chaves de responsabilidade estava com o marido. O cangaceiro ameaçou de botar fogo no estabelecimento e d. Inês não se mostrara atemorizada (REGO, 1997, p. 180).

 

 

    Enfim, no mundo de Fogo Morto, onde os personagens centrais são homens, as mulheres são as heroínas silenciosas, as que gerem sem alarde a vida destes atores principais, afogados em um velho modo de pensar. Ali, no silêncio da opressão, elas se recolhem em si mesmas, ficam “loucas”” ou atuam nos bastidores, trabalhando, gerenciando e racionalizando a cena da decadência.

 

 

Bibliografia

 

CANDIDO, Antonio. Brigada Ligeira. São Paulo: Editora da Unesp, 1992.

REGO, José Lins do. Fogo Morto. São Paulo, Editora Klick, 1997.

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