I. Mestre Amaro, lobisomem e passarinhos: os animais na primeira parte de Fogo Morto Arakin Queiroz Monteiro O romance Fogo Morto de José Lins do Rego atinge, em seu plano crítico, alto nível de verossimilhança devido sua estrutura onde os personagens apresentam harmonia entre sua caracterização psicológica e os elementos que compõem seu espaço físico na composição do enredo. Como ressalta Antonio Candido em A personagem de ficção,
[...] a sola, faca, o martelo de Mestre José ganham sentido, referidos não apenas ao seu temperamento agressivo, mas ao cavalo magro, ao punhal, ao chicote de Capitão Vitorino; ao cabriolé, à gravata, ao piano do Coronel Lula – os quais, por sua vez, valem como símbolos das respectivas personalidades (CANDIDO, 1995, p. 78).
Entretanto, a função desses elementos que compõem a ambientação do romance não se restringe somente ao fortalecimento da caracterização psicológica das personagens, mas também, contribui na formação da seqüência lógica do enredo. A égua do Capitão Vitorino, por exemplo, tem uma ligação muito estreita com função de formação de verossimilhança da personagem. O autor busca exprimir aspectos físicos e comportamentais da personagem através do animal quando este atua como um reflexo da mesma e vice-versa. Essa “égua rudada” do capitão que, nas palavras do autor: “[...] mostrava os ossos, a sela velha, roída, a manta furada, os freios de corda [...]. A égua vazava água por um dos olhos e a brida arrebentada interrava-lhe de boca adentro” (REGO, 1997, p. 24), que também “era aquele passo preguiçoso, aquele se arrastar de ossos velhos” (REGO, 1997, p. 25), complementa a caracterização física de seu dono, cuja “cara larga do velho, toda raspada, os cabelos brancos saindo por debaixo do chapéu de pano sujo, davam-lhe um ar de palhaço sem graça” (REGO, 1997, p. 24). Um animal pode enfatizar a lógica do texto despertando no leitor uma concepção mais próxima do sentido que a obra pretende expor. “Uma rola-cascavel arrulhara à boca da noite como um suspiro”, por exemplo, faz com que o elemento “animal” auxilie na composição do cenário e do contexto. Observemos no pensamento da Sinhá, mulher do seleiro Zé Amaro, como os animais atuam na sua exposição psicológica, compondo o ambiente sombrio:
[...] Zeca dormia na rede, com a boca aberta. Não quis olhar para o marido naquele estado. Ficou com medo de olhar aquela cara deformada. Mas precisava fazer alguma coisa. Seria verdade o que Floripes espalhara? A noite começava a dar sinais de sua vinda. Morcegos cruzavam o céu. Dariam mais tarde em cima dos jenipapos maduros. A filha no quarto não dava sinal de vida. Era como se estivesse só no mundo, cercada pelo silêncio do mundo. As galinhas se aquietavam no poleiro, e o bode começou a berrar. Lembrou-se que não tinha deixado água no caco do animal. Foi procurar uma caneca d’água na cozinha. Tudo estava numa escuridão de breu. Acendeu a lamparina e, sem saber como, veio-lhe uma vontade aguda de gritar, de gemer, de chorar alto. A luz clareou a cozinha. Então apareceu-lhe a cara enorme de Zeca no corredor, a cara como de um bicho. Largou a candeia no chão e correu para fora. - Sinhá, o que tu tens, mulher? Sou eu (REGO, 1997, p. 91-92, grifos nossos). Nas
proximidades da casa de José Amaro, os animais interagem nitidamente com
as personagens, como no trecho abaixo referindo-se aos minutos que se
seguem após a discussão do seleiro com Floripes, o negro apadrinhado pelo
Coronel Lula de Holanda, proprietário das terras em que o mestre
morava: E foi andando para o
lado do negro. A voz do mestre era trêmula, e Floripes, quase que
correndo, foi fugindo da fúria desencadeada. Lá longe, no fim da estrada,
gritou para o mestre José Amaro: - O meu padrinho vai
saber disto. O mestre, sentado, estava
lívido, corria suor do seu rosto inchado. Tinha passado por ele um
demônio. - Mulher, me dá um
copo d’água. O
canário cantava na biqueira, na mansa manhã de sol enublado. Um
bando de rolinhas corricavam por cima da grama. O bode
espichado por debaixo da pitombeira, quieto. Tudo quieto, tudo na paz,
menos o coração do mestre José Amaro que batia com arrancos de açude
arrombado (REGO, 1997. p. 91-92, grifos nossos). Como podemos observar, tudo parece
estar em seu devido lugar, os animais reforçam a idéia de natureza em
harmonia direta com o ambiente e diretamente contrária ao estado de
espírito do mestre. Nesse sentido, outro trecho que pode ser tomado como
exemplo é aquele que ocorre após melhora do mestre José Amaro, um dia após
ter surrado sua filha Marta com uma sola e, logo em seguida, ter chorado,
“num pranto de menino apanhado”:
O
canário cor de gema de ovo trinava na biqueira, naquele
mesmo lugar onde ficava sempre. E pela voz do pássaro, pelo canto
que lhe amaciara os ouvidos na vida passada, a vida presente foi chegando
para o mestre. Sabia que não morria mais (REGO, 1997, p. 96, grifos
nossos). Outra personagem feita da estreita
relação entre os animais e as pessoas é José Passarinho, cujo nome
já sugere que sua condição seja aquele constante cantar, como o canário da
biqueira, que tem a função de quebrar o silêncio quando não há diálogo
entre as personagens: A cantoria era triste,
como de quarto de defunto. O negro largava a alma na beira do rio: Quem matou meu
passarinho É judeu, não é
cristão, Meu passarinho
tão manso Que comia em minha
mão. A voz do cachaceiro
tocara o coração das mulheres (REGO, 1997, p. 61, grifos nossos) A personagem José Passarinho, na
sua composição aproxima-se àquela de um pássaro, inclusive
porque à ele é dado um “simples existir”, onde as fronteiras entre o “ser
animal” e o “ser humano” não estão claramente definidas. Esse tipo de
relação com os animas, onde o comportamento humano se assemelha em
determinados aspectos ao comportamento dos animais, pode ser observado
também de forma invertida quando o escritor sugere que os animais é que
atuam como as personagens humanas, a exemplo do último parágrafo da
primeira parte do livro: Já iam longe com o
corpo, quando o sujeito se foi. O mestre não pensava em nada. Havia dentro
dele um vazio esquisito. Teve medo de voltar para dentro de casa. E ali
mesmo, por debaixo da pitombeira, baixou a cabeça e chorou como um menino.
O bode manso chegou-se para perto dele e lambeu suas mãos. E
começou a berrar, como se tivesse coração de gente (REGO, 1997, p. 120,
grifo nosso). No conjunto dessas interações entre as
personagens e animais, no ambiente rústico onde o enredo é desenvolvido,
podemos observar que estes estão ali inseridos pelo autor (pássaro,
bode, porcos, burro, cavalo, galinha, galo, cachorro, sapo, gado, raposa,
morcego, preá, mosca, vagalume) na função de elementos que fortalecem
o desenvolvimento da narrativa, indo muito além de simples elementos
figurativos. Os animais nesta primeira parte de Fogo Morto fazem
parte do romance tanto quanto as pessoas que transitam por aquelas linhas
de José Lins do Rego.
II. Trabalho, mando e obediência: as profissões na primeira parte de Fogo Morto
Odirlei Dias Pereira
Zé Amaro, "um velho de aparência doentia, de olhos amarelos, de barba crescida" seleiro dos velhos tempos, trabalhava na porta de sua casa a beira da estrada. Durante o transcorrer do romance, a idéia de um cruzamento nos é dada, uma vez que grande parte da ação e a vivência de praticamente de todos os personagens ali se cruzam e se desenvolvem.
O trabalho exercido pelo personagem é visto por ele mesmo como profissão de uma pessoa que "é pobre, é atrasado, é um lambe sola" (REGO, 1997, p. 17), que vive sob a proteção de um senhor de engenho e lhe deve obediência e submissão. Seu ofício influi em suas características físicas: "batia forte na sola, batia para doer na sua perna que era torta" (REGO, 1997, p. 19). Desta maneira podemos dizer que o autor estabelece uma íntima ligação entre trabalho e adjetivação do personagem:
Ali estavam os seus instrumentos de trabalho. Pegou no pedaço de sola e foi alisando, dobrando-a, com os dedos grossos. A cantoria dos pássaros aumentara com o silêncio. Os olhos do velho, amarelos, como que se enevoaram de lágrima que não chegara a rolar. Havia uma mágoa profunda nele. Pegou o martelo, e com uma força de raiva malhou a sola molhada. O batuque espantou as rolinhas que beiravam o terreiro da tenda. (REGO, 1997, p. 15).
Inclusive nas horas de descanso, bem como durante as refeições, era impossível esquecer seu ofício pois "o cheiro de sola nova enchia a casa" (REGO, 1997, p. 31).
A lógica do trabalho está totalmente inserida e presente durante as falas e as ações do personagem Zé Amaro. Neste sentido, o personagem critica seu compadre Capitão Vitorino que, segundo pensava, não dava sentido à própria vida porque não "cuidava" de nada: "Era demais aquela vida sem rumo, aquele andar de um lado para o outro, sem fazer nada, sem cuidar de coisa nenhuma" (REGO, 1997, p. 26). Entretanto, Capitão Vitorino se julgava demais importante para ser igual ao seleiro, era um capitão: "O velho Vitorino olhava para o compadre como para um inferior. Era um seleiro, um mestre de ofício que gente branca como ele não devia levar em conta" (REGO, 1997, p. 26). Ou seja, ser branco aqui equivale a não ter de trabalhar, atividade de pobres e negros.
O julgamento moral que Zé Amaro faz de capitão Vitorino, toda a comunidade faz em relação ao seleiro a partir do momento em que ele começa a fazer seus passeios noturnos, sem função alguma. Ou seja, a ausência de função específica somada ao "gênio terrível, e um falar duro com todo mundo", aos olhos amarelados, à sua feição doentia e a barba comprida, faz com que a vizinhança passe a dizer que José Amaro está virando lobisomem. Como pensava a sua mulher Sinhá:
Zeca gostava de sair de noite, de passar horas esquecidas, andando a pé pelos esquisitos, pelos lugares desertos. E o povo inventava a história do lobisomem.[...] E por cima de tudo dera o seleiro para ao perder pelos campos, para vagabundear pela estrada, pelos caminhos ermos (REGO, 1997, p. 67).
Numa de suas andanças noturnas, Zé Amaro sofre um "passamento". Após este fato, Sinhá passa a desconfiar do mestre, a pensar que o "povo" tem razão, conforme confessa à comadre Adriana:
- Comadre estou com medo do Zeca.
[...]
Mal falado, com fama de lobisomem, Mestre Amaro torna-se cada vez mais só. Mas, além destas amarguras padece de outra referente à sua própria profissão: Mestre Amaro estaria perdendo a sua clientela que, como observa logo no início do romance, começa a dar mais valor ao produto manufaturado - principalmente importado - que ao seu produto artesanal:
Estou perdendo o gosto pelo ofício. Já se foi o tempo em que dava gosto de trabalhar numa sela. Hoje estão comprando tudo feito. E que porcarias vendem por aí! Não é para me gabar. Não troco uma peça minha por muita preciosidade que vejo. Basta lhe dizer que seu Augusto do Oiteiro adquiriu na cidade uma sela inglesa coisa cheia de arrebiques. Pois bem, aqui esteve ela para conserto. Eu fiquei me rindo quando o portador do Oiteiro me chegou com a sela. E disse, lá isto disse: "Porque seu Augusto não manda consertar esta bicha na cidade?" E deu nela um preção. Se eu fosse pedir o que pagam na cidade, me chamavam de ladrão (REGO, 1997, p. 12).
Devido a este fato, Zé Amaro sente seu trabalho artesanal desvalorizado e por conseqüência sua profissão. Agora "estava trabalhando para camumbembes. Era o que mais lhe doía. O pai fizera sela para o imperador montar. E ele ali, naquela beira de estrada, fazendo rédea para um sujeito desconhecido" (REGO, 1997, p. 17).
Além do aspecto da substituição de sua mão de obra, o agregado Zé Amaro tem plena consciência de sua posição social face à classe dominante dos senhores de engenho que, mesmo em decadência, como o Coronel Lula de Holanda, ainda conservavam alguns dos poderes e privilégios típicos dos donos da terra:
Dona de terras e de escravos, essa elite era senhora de amplos poderes sobre todas as pessoas que viviam na fazenda - familiares ou não. Seu domínio muitas vezes extrapolava as fronteiras de sua propriedade. Sua palavra tinha força de lei, e contestá-la era um abuso imperdoável (SILVA, 1992, p. 54).
Submissão e obediência é esperado por parte dos senhores de engenho em relação aos agregados de suas fazendas que, apesar de livres, eram identificados como "sendo gente de alguém". O agregado deve ao senhor de engenho lealdade e fidelidade absoluta numa relação pessoal e direta. Por estar sendo despedido das terras do Coronel Lula, Mestre Amaro amarga também a condição daquele que, velho e doente, sem condições de sobreviver do próprio ofício, está fadado à penúria. Mestre Amaro ousara criticar o dono daquelas terras em que vivia desde menino.
É neste momento de grande angústia e perda que o Mestre Zé Amaro encontra uma nova utilidade, aquela que lhe traria alegria: torna-se informante de Antonio Silvino, cangaceiro admirado por ele e que acredita ser o único capaz de fazer justiça aos mandos e desmandos dos senhores de engenho. "Agora tinha um motivo para o resto dos seus dias. Pouco se importava que a filha fosse um fracasso, que a mulher não lhe desse coisa alguma." (REGO, 1997, p. 79).
- Sinhá, o aguardenteiro Alípio está
aí. Vai matar duas galinhas e preparar para ele levar para o capitão
Antonio Silvino.
As marcas do ofício
Apesar da recente liberdade auferida no tempo do romance, os negros eram considerados inferiores aos brancos segundo o livro deixa entrever em diveras situações. E isto pode ser notado também pelas profissões por eles exercidas. Os ex-escravos ocupam posições de serviçais e trabalhadores braçais, atividades similares exercidas por eles durante o período em que eram cativos. Em contrapartida, os brancos ocupam posições de trabalho "mais valorizadas" como por exemplo cargos públicos, delegados e juízes.
O exercício de profissões serviçais pelos ex-escravos estava tão arraigadas a eles que passava a constituir parte de seus nomes próprios, como por exemplo Pedro Boleeiro e Lucindo Carreiro . Nota-se que as profissões acompanham o primeiro nome, sempre como a letra inicial maiúscula. Outro fato a ser considerado é a simplicidade dos nomes dos ex-escravos. Esta característica não é percebida com as profissões exercidas por brancos que, freqüentemente, são identificadas pelo nome do engenho que possuem ou pela patente do exército: "Era o coronel Luís César de Holanda Chacon, senhor de engenho de Santa Fé" (REGO, 1997, p. 19, grifos nossos). Acompanhado de um nome "pomposo", segue-se imediatamente também iniciados com letras maiúsculas o nome do engenho do qual é proprietário.
O mesmo não ocorre com o "pintor Laurentino", cujo nome (Laurentino) é freqüentemente precedido pela sua profissão (pintor). Podemos entender desta forma que cada profissão caracteriza intrinsecamente um personagem e o particulariza em todos os aspectos: nomes, trejeitos, modos de falar e agir.
Existe também o fomento do estereótipo da profissão exercida pelo personagem Henrique - barbeiro - que aparece uma única vez nesta primeira parte do romance, para informar Zé Amaro sobre o paradeiro do capitão Antonio Silvino. Após o diálogo entre os personagens, o narrador assim diz:
O barbeiro Henrique pararia no Santa Fé, no Santa Rosa, antes de chegar na sua tenda de São Miguel. José Amaro não gostava muito dos seus modos. Homem sério não tinha que andar alcovitando a ninguém. Diziam que o dr. Juca do Santa Rosa servira-se dele para negócio de mulher. Mas a verdade era que todos o procuravam" (REGO, 1997, p. 72).
Diálogos de trabalho
Freqüentemente os diálogos entre as personagens têm por temática o trabalho. Ora questionam-se mutuamente sobre este tema, ora justificam o seu "ir e vir" por ele. Sobretudo diante da casa de Mestre Amaro, os diálogos derivam sempre para este assunto. Fica claro que cada personagem deve desempenhar uma função no enredo, assim como cada indivíduo deve ser útil na sociedade. É dessa maneira que ocorre o primeiro diálogo entre Capitão Vitorino e o Mestre Zé:
- Muito trabalho, compadre José
Amaro?
Na cozinha do engenho Santa Fé "a velha
Adriana cosia as partes dos frangos que gritavam nas suas mãos", enquanto
a "negra Mariana" comenta: "Comadre, o mestre José Amaro esteve aqui
trabalhando no carro..." (REGO, 1997, p. 37). Adriana, ao regressar do
engenho Santa Fé, passa pela porta do seleiro José Amaro, este quando a
viu levantou-se: "- Boas tardes, compadre./ - De viagem, comadre Adriana?/
- Estou voltando do Santa Fé. Estive fazendo serviço para dona Amélia"
(REGO, 1997, p. 41).
- Mestre Zé, a coisa no Pilar está
pegando fogo. Seu Vitorino já andou ontem por lá, com uma praça atrás dele
como ordenaça. Está dizendo que o doutor juiz quer botar o major Quinca
Napoleão na cadeia, por causa da porrada que deram na cabeça do velho. Ô
Velho doido, danado! Ele estava dizendo na porta da cadeia que cosia gente
na faca. Está de punhal, mostrando a todo mundo.
O ofício de ser passarinho
Ainda no que diz respeito a funções como formas de adjetivação de personagens, temos o personagem José Passarinho que, assim como o próprio nome sugere, "assemelha-se a um passarinho". Inesperadamente aparece em algumas passagens da obra, trazendo ou levando alguma informação ou fuxico:
A mulher do seleiro pagou-lhe e ele
arrumou-se para sair quando apareceu na estrada José Passarinho, velho
negro que vivia constantemente embriagado.
A "cantoria" de José Passarinho é sempre notada por algum personagem central, entremeando as conversas, denotando seu vôo por entre os demais personagens e suas ações: "De muito longe escutava-se a voz de Passarinho no canto" (REGO, 1997, p. 76). Ou ainda:
E continuaram em silêncio no serviço [...] Ouvia-se a cantoria de um homem mais para o lado do Santa Fé. Era Passarinho, no serviço de uma vazante, no trabalho que para ele era um fim de mundo. A cantoria era triste, como de quarto de defunto. O negro largava a alma na beira do rio (REGO, 1997, p. 61).
Trabalho feminino
As profissões das personagens femininas, de divergentes classes, convergem no que tange à submissão aos mandos dos homens. A mulheres são regidas por padrões de submissão e obediência que denotam a dinâmica hierarquizada no universo açucareiro. Não escapam a esta dinâmica nem mesmo Dona Amélia, mulher do Coronel Lula de Hollanda. Neste sentido, sua situação é a mesma de Sinhá e Adriana. As únicas atividades exercidas pelas mulheres neste trecho da obra são atividades consideradas "tipicamente femininas": cozinhar, cuidar de galinhas, bordados e cuidados em geral com a casa.
Mestre Zé Amaro era rude ao dirigir-se a Sinhá, que exercia somente trabalhos domésticos, como dissemos acima, tipicamente femininos, e considerados por ele como vagabundagem: "- Sinhá, bota esta jantar, faz alguma coisa, mulher dos diabos" (REGO, 1997, p. 19). Como dissemos anteriormente criar galinhas e porcos, carregar lenha ou água, por exemplo, era trabalho feminino, portando para Sinhá ou para a filha Marta, considerado por Zé Amaro subalterno e desqualificado. "Viu a filha que chegava com um pote de d'água na cabeça" (REGO, 1997, p. 29). "A velha Sinhá tangia a criação para o poleiro" (REGO, 1997, p. 20).
Gostaríamos de deixar claro que o autor não atribui funções domésticas somente às principais personagens femininas, pois a partir delas, ele caracteriza todo o universo feminino que permeia sua obra. Assim, diz o autor: "Uma tarde, porém, a velha Sinhá estava no rio batendo roupa e lá estava também uma mulher da caatinga que ela não conhecia" (REGO, 1997, p. 61). Marta, "aprendeu a ler, tinha um bom talhe de letra, sabia fazer seu bordado, tirar o seu molde, coser um vestido" (REGO, 1997, p. 46). Marta era, enfim, uma moça trabalhadora, como toda boa moça devia ser, e mesmo assim "não havia rapaz que parasse para puxar uma conversa" (REGO, 1997, p. 46).
A relação estabelecida entre as personagens Sinhá e Adriana é pautada essencialmente pela vertente do trabalho, reforçando assim a utilidade da relação de compadrio existente entre elas. "Pois compadre, diga à comadre Adriana que apareça. Tenho uns frangos pra castração. É só ela quem sabe fazer destas coisas" (REGO, 1997, p. 27).
Tempo de transição
Após esta análise podemos interpretar o período descrito pela obra como um tempo de mudanças, de alterações drásticas nas relações sociais, quando a decadência da aristocracia rural começa a ceder espaço para um outro setor agro-manufatureiro: a usina. A nova forma capitalista impunha novas formas de organização rural e a revisão da ordem agrário-patriarcal que tinha se organizado através do trabalho escravo. O trabalho livre impunha novos tempos.
Entretanto as relações pessoais descritas neste trecho da obra não acompanham essas mudanças que ocorrem no sistema de produção fazendo com que tradições e costumes de um tempo "que já passou" entrem em conflito com as novas regras, principalmente as oficiais.
III. O coronel e a besta: a função dos animais na segunda parte do romance
Elisângela da Silva Santos
Os animais na segunda parte do romance,
acompanham todo o processo de desenvolvimento e de decadência do Engenho
Santa Fé, compondo o mesmo simbolismo que vemos na primeira parte e
fazendo a mesma função: dando sustentação ao enredo, construindo elementos
da narrativa que lhe reforçam a verossimilhança: O CapitãoTomás Cabral
de Melo chegara do Ingá Bacamarte para a Várzea do Paraíba antes da
revolução de 1848, trazendo muito gado, escravos, família e
aderentes (REGO, 1997, p. 122, grifo nosso). Pertencente à família Cabral do Ingá, o
Capitão possuía bens relevantes como faz notar o narrador: os escravos,
gados de primeira ordem, moedas de ouro etc. No texto este é o período
dedicado à ascensão do Engenho e os animais aqui darão afirmação ao
significado das posses. Se, como se
observou, na primeira parte as comparações entre os homens e os animais
são freqüentes, nesta segunda parte a comparação entre escravos e animais
é a primeira que salta aos olhos do leitor: “Negro no Santa Fé era de
verdade besta de carga.” (REGO, 1997, p. 123, grifo nosso). A
comparação é feita no momento de apresentação do perfil do Capitão Cabral
de Melo. O termo “besta de carga” é relacionado aos trabalhadores
negros como reflexo do senhor do engenho, pois sua figura é caracterizada
como sendo um homem trabalhador, duro nas decisões, preocupado e severo
também com sua família. No auge do
desenvolvimento financeiro do Engenho Santa Fé, o Capitão mandara trazer
do Recife um piano para sua filha Amélia. Para chegar ao engenho, o
instrumento tivera que ser carregado por “muitos negros e ele mesmo a
cavalo, no passo vagaroso, vinha atrás dando ordens” (REGO, 1997,
p. 123, grifo nosso). A singularidade desse momento dá-se de uma maneira
metafórica, pois o Capitão comanda a chegada de um objeto sofisticado, o
piano, sobre um animal de grande porte, o cavalo que aparece como
representação da hierarquia, direcionando seu olhar a partir de cima em
direção a seus escravos. O Capitão estava
preocupado com sua filha Amélia, pois está já atingira a idade de se casar
e, para ele, nos arredores do Santa Fé não havia um marido à sua altura.
Dizia que não tinha gastado dinheiro com os estudos para vê-la casada com
“camumbembe”: “Para vê-la com um daqueles animais, ele preferia que
ficasse toda vida com ele” (REGO, 1997, p. 126, grifo nosso). É nesse momento
que a personagem de Luís César de Holanda Chacon surge no romance; era um
parente de Capitão Tomás. Este vê a possibilidade de um casamento para sua
filha pois Luís César de Holanda Chacon “era um rapaz cerimonioso, de boa
aparência, trato fino.” (REGO, 1997, p. 126) O casamento é realizado e
todos têm a esperança de Lula ser um bom marido para Amélia. Essa
esperança depositada no genro logo se transformará e preocupação, pois
Lula não atenderá todas as expectativas. O genro de fino trato não tinha
trato com a terra e passava as tardes inteiras na sala de visitas ouvindo
sua esposa tocar piano. O capitão Tomás se incomodou com tal situação,
pois os homens de sua terra não possuíam tal comportamento, estavam
acostumados a ter um comando enérgico de suas posses. Além disso, através de Amélia, capitão
Lula pede ao sogro para trazer um cabriolé do Recife. É uma novidade,
assim como foi o piano, para os moradores das redondezas. Durante a
chegada do cabriolé “braços de negros, de curiosos, empurravam o carro.
Para os cavalos cansados havia negros que os substituíam” (REGO, 1997, p.
132). Os trabalhadores negros aqui aparecem novamente comparados aos
animais, ou como substitutos da força animal. O cabriolé passa
a ser um sinônimo de importância para a família do capitão Tomás e,
portanto, ele “caprichara na parelha que puxava a sua carruagem”, enquanto
“via outros mais ricos do que ele mandando a família para as festas em
carro de boi” (REGO, 1997, p. 133). Entretanto, o Capitão se alegra apenas
por um tempo com a nova ostentação do genro. A notícia de que sua filha
Olívia enlouquecera lhe causa profunda tristeza, fazendo-o envelhecer
rapidamente. O abalado Capitão volta à ativa, entretanto, quando sabe da
fuga do escravo Domingos: Era moleque (...), de muito boa pinta, de 18
anos, de saúde de ferro”. (...) Todo o antigo Tomás Cabral de Melo
ressurgiu para o Santa Fé. Fez-se, então no seu cavalo ruço e com o
negro Laurindo saiu atrás de Domingos (REGO, 1997, p. 128, grifos
nossos).
O dono do engenho,
dedica todo seu tempo para encontrar o escravo foragido. Esquece até dos
problemas de saúde de sua filha. Visita vários engenhos, até ter a
promessa do Barão de Goiana que o escravo voltaria o mais rápido possível.
Domingos “volta”, pede perdão ao capitão, porém este ordena que o capataz
lhe dê uma surra enquanto ouve sua filha tocar uma valsa ao piano. Após essas
grandes agitações na estrutura do engenho, Amélia informa a todos sobre
sua gravidez. Notícia que agradou a família. Porém, é também quando o
coronel fica sabendo que o negro Domingos fugira outra vez, agora levando
dois cavalos de sela, e abala-se profundamente. Sai em busca do seu
trabalhador acompanhado do genro e de outros dois escravos. Não encontra
Domingos e sente-se ofendido em seu orgulho e honra a ponto de cair na
mais profunda e irreversível depressão: O Capitão Tomás vivia como
se tivesse sido atacado de doença grave. Apareceu-lhe um capitão-de-mato
com seu negro fugido e ele não dera a menor importância ao fato. Deitado
na sua rede, calado, passava os dias inteiros alheado por completo de
tudo. O velho tinha sido ultrajado, era um homem que se considerava sem
honra... (REGO, 1997, p. 138). Com o Capitão
Tomás sem ânimo para nada, nem para os negócios, Dona Mariquinha tomara as
“rédeas” do engenho. Fato que denota um choque no modelo patriarcal, sob o
qual a sociedade estava organizada. A última vez que
o capitão saiu de casa, “andou para estrada. Todos os passarinhos da
cajazeira cantavam para ele. E não ouvia os cantos dos seus passarinhos”
(REGO, 1997, p.138). Pela primeira vez, os animais não aparecem
simbolizando a imponência do Capitão. Aqui, ao contrário, fazem nexo
expressivo intensificador do sofrimento e dor do Capitão Tomás em seu
sentimento de desilusão. O Capitão Tomás
morre e a briga entre Dona Mariquinha e genro se inicia, pois este exigia
a maior parte dos bens do engenho, acabando com a morte de Dona
Mariquinha. Agora só permanecem no Engenho Santa Fé, Seu Lula, Dona
Amélia, Olívia e Neném, a filha do casal. As brigas de Dona
Mariquinha e Lula contribuíram para que despertasse o ódio de Amélia pelo
marido: “(...) coisa que nunca sentira, começou a odiar aquele homem sem
piedade, aquele monstro que a maltratava com tamanha crueldade”
(REGO, 1997, p.144, grifo nosso). Neste sentido, é possível fazer um
paralelo entre a primeira e a segunda parte romance com relação às esposas
dos protagonistas: Amélia e Sinhá. Esta, no desenrolar da história, julga
seu marido Mestre Amaro, como um desalmado, passando a temê-lo, a
considerá-lo um lobisomem, assim como as outras pessoas do Pilar. Dona
Amélia, assim como Sinhá, sentia-se casada com uma besta-fera. Com a abolição
dos escravos, o Santa Fé decai efetivamente, pois os negros vão
abandonando o engenho. A decadência também aparece na caracterização dos
animais a partir desse momento. Ao mesmo tempo Seu Lula tenta manter uma
imagem de seus símbolos de poder e riqueza, pois o cabriolé continua sendo
utilizado pela família, principalmente quando iam para as missas: As rodas do cabriolé
enterraram-se na areia fofa e os cavalos corriam e as campainhas acordavam
os pássaros dormindo, espantavam os calangos. Uma
raposa cortou a estrada aos saltos, e os faróis do carro pareciam
olhos que se encadeavam na luz branca da lua (REGO, 1997, p.157, grifos
nossos). Nesse
trecho o autor explicita um contraste entre a natureza e o homem, pois
este tenta impor-se e intimidá-la. A decadência é evidenciada pela mudança
dos cavalos que passam a parelhar o cabriolé: Os cavalos já não eram aqueles dois
belos cavalos ruços que pareciam de história de Trancoso. A nova parelha
do cabriolé não apresentavam aquela beleza de antigamente.
Eram dois pobres quartaus que podiam ser duas bestas de carga. Em
todo o caso teriam força bastante para arrastar a família do Santa
Fé pelas estradas (REGO, 1997, p.157, grifos nossos). Este
arrastar da carruagem com dois cavalos pobres é equivalente ao da
família e do engenho no seu processo de substituição pela usina... uma
espécie de morte lenta, afogada no simulacro do que um dia fora em termos
de riqueza e poder.
VI. A cosificação do poder: os objetos na segunda parte de Fogo Morto
Camila Vedovelo
José
Lins do Rego descreve em “ O Engenho de Seu Lula”, segunda parte de seu
romance Fogo Morto, toda a trajetória do Engenho Santa Fé, sua
construção, consolidação e decadência. Decadência esta que se dá pela
chegada da industrialização e
da modernização representada pelas usinas.
Em conjunto com a industrialização, com
as mudanças econômicas e tecnológicas que estão se colocando naquele
período, há também uma mudança de valores morais e das formas de
socialização. As mudanças econômicas se dão de forma mais acelerada que as
mudanças de valores. O livro mostra um momento de transição onde há
nitidamente um choque entre o tradicional e o novo.
Esse choque é posto por José Lins do
Rego de várias formas e uma dessas maneiras é a relação simbólica colocada
pelos objetos que aparecem principalmente durante a segunda parte de seu
romance.
A família da Casa Grande do Engenho
Santa Fé é o estereótipo da família patriarcal, com valores tradicionais e
católicos arraigados. O Capitão Tomás Cabral de Melo, construiu o engenho
através de trabalho árduo e conseguiu se colocar como um dos grandes
senhores de engenho da região. Através da consolidação de seu engenho,
Capitão Tomás ganha o respeito de toda a comunidade. A consolidação do
Engenho Santa Fé e o auge da riqueza e do respeito é demarcado pela
chegada do piano de cauda que fora comprado para sua filha que tinha
acabado de chegar da capital.
A chegada do piano é feita de forma
ritual. Rompendo caminhos como algo nunca visto, o piano tem em si a
simbologia da consolidação do Santa Fé como um grande engenho. É a chegada
da riqueza, do poder.
A partir da chegada do piano, o Capitão
Tomás passa a ter força política. É um senhor de engenho respeitado em
toda a região, chegando ao ponto mais alto de sua vida.
Amélia, a filha de Capitão Tomás,
casa-se com seu Lula, um rapaz da cidade com estudo e requinte. O genro do
Capitão Tomás traz da cidade seu cabriolé que se mostra muito mais que um
mero meio de transporte: ele demonstra o refinamento vindo da cidade em
contraposição à brutalidade do campo e, como escreveu José Lins do Rego,
“O cabriolé dera muita importância ao Santa Fé” (REGO, 1997,
p.133). A família do Santa Fé se posicionava acima das outras da região,
até mesmo das mais ricas devido ao cabriolé e ao status que este lhes
dava.
Capitão Tomás após sofrer uma grande
decepção por não conseguir recuperar um escravo que fugiu entra num estado
depressivo gerando uma transição de mando do engenho, primeiro para D.
Mariquinha ainda enquanto Capitão Tomás estava vivo e, após a sua morte e
de D. Mariquinha, para Seu Lula. A depressão do Capitão Tomás e a
conseqüente transição de mando é representada pela rede na qual Capitão
Tomás se encontra convalescente. A rede assume aqui a simbologia da
impotência de Capitão Tomás, da perda da sua força.
Após a morte de Capitão Tomás, Seu lula
mostra toda a sua ambição ao querer herança das terras. O cabriolé é visto
nesse momento pelo povo do Pilar como um significante que contém em si
como significado toda a ambição contida em Seu Lula.
Com a morte de D. Mariquinha, Seu Lula
no poder e a abolição dos escravos, o Engenho Santa Fé começa a entrar em
decadência. Seu Lula, que a partir desse momento passa a ser conhecido
como Capitão Lula de Holanda, tem todo o refinamento e requinte da cidade,
porém lhe falta a bravura e o braço forte do homem do campo. A partir da
decadência do Engenho Santa Fé, o cabriolé traz para si a representação da
manutenção da tradição, apesar das mudanças dos valores e das mudanças
estruturais e econômicas que estão se dando.
Capitão Lula de Holanda tenta de
maneira desesperada manter a imponência que um dia tivera o Santa Fé e sua
família. Essa tentativa de se manter como família tradicional e de grande
riqueza é mostrada além do constante uso do cabriolé, pelas jóias que as
mulheres do Santa Fé têm que ostentar.
A decadência total do Santa Fé é
evidenciada quando o piano se cala: o fim da riqueza e do poder do Santa
Fé é o emudecimento do piano.
V. Os objetos como elogio da metáfora em Fogo Morto
José Milton Pereira No
mundo de Fogo Morto, composto de Mestre Zé Amaro, de Lula de
Holanda Chacon, Capitão Tomás Cabral de Melo, D. Amélia, o cangaceiro
Antonio Silvino, Capitão Vitorino, há um outro mundo, mais subterrâneo,
feito de outra medida, que são os objetos. O piano, o cabriolé, a peia, o
tronco, o cipó-de-boi, a moenda, o martelo, o espelho, e até o negro,
participam da engrenagem do engenho desvelando uma linguagem própria
desses seres que a primeira vista não passam de coisas sem alma.
O
lirismo da ostentação: o piano O piano
arrumava-se na casa-grande sob dois modos de ser: por um lado ele garantia
seu lugar por privilegiar a ostentação, a posição, a posse. Por outro,
através das mãos de Amélia, o piano diluía sua coragem de segredar nas
coisas do engenho uma outra alma. Substância que persiste em ser
desagregação de uma ordem para instaurar outra, do piano irrompia o
deleite que fazia com que o mundo de multiplicidade que era aquele engenho
renunciasse às hierarquias do “meu”, de modo a instaurar a unicidade de
uma outra alma: D.
Amélia tocava as suas valsas com o coração, as varsovianas tomavam conta
de suas mãos, de seu sentimento. O capitão dormia com a filha na música,
aos domingos, com os negros parados, com a terra dando vida às sementes. A
casa-grande do Santa fé, naquela tarde de concertos, tinha outra alma
(REGO, 1997, p. 124-125). Símbolo
de poder, o piano, que fora mandado trazer da capital pelo capitão Tomás
para servir à felicidade de sua filha Amélia, roubava a atenção dos que
viviam na casa, não só do Capitão como também de D. Mariquinha e até mesmo
dos escravos que paravam para ver/ouvir esse modo de equilibrar no ar o
agora-instante como quem adivinha por inteiro no que é a vida em si. Quando ela
conhece o primo Luís César de Holanda Chacon (aparentado de gente que
lutou na revolução de 1848), que viera de Recife para pedir a sua mão, o
piano tomou-se de outra forma: era necessário instrumentalizar-se de uma
vontade mais calma, de toques mais leves, de rubor mais sutil: Agora o
piano tinha mais sentimento, as varsovianas soluçavam, os dedos da moça
eram mais leves [...]. Nunca aquele piano falava com tanto sentimento.
Amélia dedilhava como uma fada [...] (REGO, 1997, p. 126-127). No
entanto, apesar da força da leveza do qual o piano se nutriu na partitura
daquele instante fazendo as coisas da casa tomarem-se de outra respiração,
e até de outra imortalidade, Luís César de Holanda Chacon, naquele dia
fora embora sem fazer o pedido de casamento. Assim, como tudo que se cala
e deixa apenas resíduos de memórias para servir a uma outra posteridade, o
piano calou-se triste como o olhar do Capitão quando soube que Olívia, sua
outra filha, adoecera. Símbolo
também de força e ostentação que se irradia para além do engenho, o
Capitão Silvino, líder de um bando de cangaceiros, quando ocupou o
engenho, fez valer essa verdade. Atrás do pote de ouro, que diziam haver
na casa-grande, começou a vasculhar por toda a casa: os móveis, os
retratos da parede e até o piano: Estenderam
no meio da sala o piano de cauda que o capitão Tomás trouxera do Recife.
Parecia um grande animal morto, com os pés para o ar. Um cangaceiro de
rifle quebrou a madeira seca, como se arrebentasse um esqueleto (REGO,
1997, p. 227). Um
tempo se arrebentou naquele chão da casa-grande consumando uma verdade já
a muito anunciada: o engenho acabou. O piano, escancarado no meio da sala
feito silêncio inumerável respira fundo a desagregação de uma ordem que
imprimiu por um longo tempo a hierarquia da moral do senhor de
engenho. O
delírio da ostentação II: o
cabriolé
O
capitão Tomás Cabral de Melo, como gostavam de dizer, era homem simples,
mas que não se dispensava em mostrar aos senhores de engenho do Ribeira,
que não era camumbembe. Tinha filha que tocava piano e genro que possuía
cabriolé.
Novidade para os
olhos entreabertos não só do capitão Tomás, mas também de toda aquela
gente que inventariava no cotidiano do engenho as formas do ser-escravo,
dos da casa, da família, etc, a chegada do cabriolé ao engenho foi
comparado em igual medida à chegada do piano.
O piano chegou e logo foi ocupando um
lugar de destaque na sala da casa. Em sua imobilidade absoluta, imprimiria
outras formas de movimentos, como os que fazem com que as escravas da
cozinha espichem o ouvido. Ou ainda, demarcaria na experiência do olhar de
longe o modo como D’Amélia movimentava os dedos no piano assim como também
o olhar do capitão que se rouba a si mesmo para ir além da rede pendurada
no alpendre. Apesar de, em princípio, ter sido contrário a compra, o
capitão Tomás, assim que o cabriolé chegou ao engenho, apoderou-se de uma
satisfação sem outra medida que a própria medida da felicidade:
Corriam
os cavalos ligeiros e o mundo para o capitão Tomás se parecia com aquele
mundo que ele sentia quando Amélia tocava o piano de som tão bonito (REGO,
1997, p. 132).
Ora, o cabriolé veio a dar importância
ao Santa Fé. Enquanto o piano imprimia naqueles que o ouviam uma
interioridade outra para além da relação de opressão entre o senhor e o
escravo, homem e mulher, o cabriolé, em seu desfile inédito, denunciava
sob os olhares atentos das pessoas do campo e da cidade, o sabor da
ostentação. O cabriolé veio então a se tornar objeto de visita aos outros
engenhos, de curiosidade, de luxo e até de missa. Assim, mostrando uma fé
tão fervorosa que chegava a colocar em atenção os entes da casa, até mesmo
os escravos, todo domingo Lula de Holanda Chacon, religiosamente ia a
missa. Na vila, ninguém anunciava a chegada do Capitão, afinal, nem
precisava, o cabriolé era dotado de um mecanismo de campainha que,
agregado ao luxo, vinha compor na manhã de domingo um enredo de festa aos
olhares que se achegavam a janela ou saiam as ruas para ver, ouvir e
acompanhá-lo. Outras famílias mais ricas que o Capitão Tomás iam a missa,
adoravam o mesmo Deus, rezavam-se na mesma oração mas chegavam de carro de
boi.
Mas, nada é tão
permanente que não encontre um tal limite para onde devem repousar toda
pretensão de eternidade. Assim, antes de o capitão Tomás morrer, já corria
a fama de Lula de Holanda de ser um maltratador de escravos. Quando tal
fato aconteceu, essa fama deixou toda a ala de escravos em suspenso,
principalmente quando o povo soube que o genro queria apenas o dote da
filha. Força simbólica, força de espanto, força de riso, de festa, de
admiração, o cabriolé passou a ser olhado então como o lugar do mal. Dele
irradiava principalmente a surra que o moleque Domingues levara: O cabriolé do genro
mau começou a fazer mal ao povo. Bastava ouvi-lo, com as campainhas, para
que a imagem do genro sem coração, do genro cruel, aparecesse para toda a
gente [...].O capitão Lula de Holanda, com sua parelha de ruços, trepado
na sua carruagem, chegava para as missas de domingo como um príncipe.
Trazia o boleeiro as duas almofadas de seda para ele e a mulher se
ajoelharem. O povo olhava para aquele luxo com prevenção. Fidalgo de
porcaria. Viera de Recife com a roupa do corpo e ali parecia que tinha o
rei na barriga (REGO, 1997, p. 143 e 146). O que estava ainda no horizonte agora
está tão perto que até se adere a verdade do tato. Com a abolição, o
engenho do Capitão Lula de Holanda entrava em profunda decadência. As
pessoas se aproximavam dos escravos para ouvir as histórias de maus tratos
aumentando ainda mais sua fama. Mesmo assim, as pessoas se aproximavam do
cabriolé quando chegava à missa, mas agora com uma certa suspeita. Já não
havia novidade em imprimir no solo da boca um viés talvez de espanto. Em
vez do espanto, da festa, da admiração, as pessoas começavam a trazer na
membrana do olhar um certo teor de ódio, de indignação:
Quando o carro do
capitão Lula de Holanda passava, corria gente para ver o monstro, todo bem
vestido, com a família cheia de luxo, que ia para a missa (REGO, 1997, p.
148). Com a abolição, quase já não restava
nenhum trabalhador negro no engenho. A desagregação tomava a vez e já
assumia o comando das coisas no Santa Fé: no modo como agora canavial
produzia apenas o suficiente para dizer que a morte, iminência já visível,
inaugurava na mecânica da moenda um silêncio sem volta. Tudo agora era
matéria de ontem. Naquele engenho já não havia dinheiro para repor o que o
tempo anula sem piedade. Era necessário consertar as correias da parelha,
a roda, trocar os cavalos, mas como? Na porta de lado da
igreja ficava o cabriolé, que os moleques cercavam como se nunca o
tivessem visto. Os cavalos já não eram aqueles dois belos ruços, que
pareciam de história de Trancoso. A nova parelha do cabriolé não
apresentava aquela beleza de antigamente. Eram dois pobres quartaus, que
podiam ser bem duas bestas de carga (REGO, 1997, p. 159). O
delírio da opressão: o negro
O negro pertencia
às coisas do engenho como um objeto por excelência. O capitão contava os
negros como fazendo parte de seus outros pertences como o carro de boi, a
moenda, as sementes, por exemplo. Um negro deve apresentar feições bem
lapidadas bem ao gosto do olhar opressivo dos senhores de engenho. Eis que
uma roda de carro de boi obedecia bem ao seu destino: ser roda de boi. Foi
destinada para fazer parte da engrenagem de um carro de boi, que por sua
vez serve para levar a cana-de-açúcar de um lugar para outro. Foi feito de
tal modo para que não se quebre à toa, feito da dureza do sólido. Mas
quando se quebra é necessário receber reforço novo, pelas mãos caprichadas
de Zé Amaro em tempos de decadência. Um negro é preciso também estar
arrumado, lapidado, mas não com os instrumentos de Zé Amaro como o seu
martelo, porque este foi feito para respingar o labor de sua angústia para
dentro da casa, para o relevo da porta, para o meio das panelas de Dona
Sinhá e até para o candeeiro quando a noite adentrava feito fome veloz na
interioridade insana de Marta. Assim,
é preciso fazer movimentar a engrenagem do engenho, que não se resume em
compor-se de estacas que demarcam o território do meu e do outro. Também
não se resume em enfileirar à vista dos olhares o facão com que se
inaugura no caule da cana a voragem da lâmina nem mesmo a moenda com que o
engenho também se instrumentaliza para imprimir nesse entre-lugar o modo
como as hierarquias (re)fundam o dizer “sim” à hereditariedade de sangue e
o dizer “não” à subversão daqueles objetos que nasceram para ser, no
máximo, crias da casa. Para esses, são legados os objetos feitos para
serem usados para disciplinar objetos, como a peia, tronco e o cipó-de-boi.
Carregados da moral não só do senhor de engenho como da própria igreja,
esses objetos feitos para servir ao mando, imprimem no universo do engenho
o apelo de outra espécie de “não”: aquele que faz até mesmo o piano de
Dona Amélia romper o resumo da casa para ir estender-se lá fora no lombo
do moleque Domingos que havia sido capturado pelo Capitão Tomás:
[...] A
tarde morria no Santa Fé tristonho. A valsa encheu a casa-grande, saiu de
porta afora, foi estender-se pelo canavial verde, foi acalentar a senzala
oca, com os moleques nus pelo barro duro, foi abafar os gritos de Domingos
na mesa do carro, de corpo nu sangrando com o couro cru que lhe abria
feridas no lombo. O piano de Amélia amolecia o coração do velho. De
repente ele levantou-se, chegou na porta e gritou: – Pára,
Leopoldo (REGO, 1997, p. 129-130). D. Amélia, apesar de tomar-se toda de
um certo lirismo quando o piano tomava conta não só de si como de todos
que ouviam, ao se referir às coisas do engenho, colocava o negro na mesma
ordem que eram tratados os outros objetos da fazenda, como sementes, dinheiro, etc:
O diabo
era a vida descansada do genro, aquele paradeiro, aquela distância da
terra. Tinha terra gorda para trabalhar, dinheiro, negros, sementes, e
ficava dentro de casa, naquela leseira, naquela preguiça sem fim (REGO,
1997, p. 134-135).
Para
esse objeto, o negro, outros instrumentos são necessários de modo a
deixá-lo pronto para a ordem mecânica do “faça”: o chicote, o tronco, a
peia. Assim, na engrenagem do engenho, objeto deve concertar objeto,
objeto deve lapidar objeto, objeto deve arrumar objeto; enfim, objeto deve
torturar objeto, desses que deixam marcas visíveis/indizíveis tanto no
solo da pele como na do engenho.
O
delírio de si mesmo: espelho de Mestre Zé Amaro
Espelho,
simulacro de mim no Outro: nele está o mesmo desenho da boca, o mesmo
olhar longe feito para denunciar a angústia de ser aquilo que não é: “Não
sou lobisomem” – dizia Zé Amaro. Diante do espelho, como a dizer a si
mesmo que o que está do outro lado não é matéria de carne, mas de um homem
que se recusa a ser objeto de outro, que se recusa a ser camumbembe, que
chora pela filha (Marta) longe e pela mulher (Sinhá) que o abandonou para
não abandonar a si mesmo; que sente desejo de andar através da noite feito
rumo sem fim: Lobisomem.
Levantou-se o mestre e foi procurar aquele espelho que ele tinha guardado
na mala. Mirou-se, e a cara gorda, inchada, os olhos amarelos, a barba
branca deram-lhe a sensação de pena de si mesmo. Estava no fim, a morte
esperava por ele (REGO, 1997, p.187). O
que procura Zé Amaro diante do espelho? O que nele se governa a ponto de
roubar-se para outro tempo lá onde se esconde o reduto da morte? Mesmo com
José Passarinho fazendo lhe companhia, sentia-se só. A morte era uma
distância próxima: estava bem diante desse outro lado feito de matéria de
vidro legado principalmente da vaidade da vida. Zé
Amaro estava só, sem medida de rumo para incorporar pelo menos na hóstia
da boca um verbo mais alegre. Marta foi para recife, Sinhá lhe abandonou,
o Capitão Lula de Holanda lhe pedira a casa já que morava no engenho como
agregado. Que mais lhe reservará os acontecimentos? Era preciso ir embora,
mas para onde? Que essência buscar de não sei onde, de que matéria ou de
que realidade transcendente que possa ofertar a Zé Amaro uma verdade mais
lúcida. Por que não trazer trazer para o corpo deste texto o poema de
Carlos Drummond (1902-1987). E agora, Mestre Zé Amaro? Está
sem mulher,/ esta sem carinho,/ esta sem discurso/ já não pode beber,/ já
não pode fumar,/ cuspir já não pode,/ a noite esfriou,/o dia não veio,/ o
bonde não veio,/ o riso não veio,/ não veio a utopia/ e tudo acabou,/ e
tudo fugiu/ e tudo mofou/ e agora, José? (Drummond, 1987, p. 154)
As
coisas de Zé Amaro têm agora outros silêncios, respondem a outros
sentidos. Enquanto seu martelo agora repousa feito um silêncio absurdo na
memória das paredes da casa que ainda guardam a loucura de Marta, a falta
de Marta e de Sinhá, a faca foi inaugurar seu outro sentido quando os
sentidos para Mestre Zé Amaro respondem a linguagem fugidia dos que buscam
do outro lado, não do espelho, mas da morte a solidão necessária para
compor-se de outra roupagem: desejo de ser-por-si-mesmo e não extensão de
terras de engenho. Assim, longe de se denunciar como algo nada além do que
simulacro, o espelho lhe mostrava coesamente o que em Zé Amaro se
procurava. Dotado da única liberdade possível ao alcance de si, Zé Amaro
se suicida. A morte era seu único devir.
Bibliografia
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