I. Mestre Amaro, lobisomem e passarinhos: os animais na primeira parte de Fogo Morto

Arakin Queiroz Monteiro

  O romance Fogo Morto de José Lins do Rego atinge, em seu plano crítico, alto nível de verossimilhança devido sua estrutura onde os personagens apresentam harmonia entre sua caracterização psicológica e os elementos que compõem seu espaço físico na composição do enredo. Como ressalta Antonio Candido em A personagem de ficção,

 

[...] a sola, faca, o martelo de Mestre José ganham sentido, referidos não apenas ao seu temperamento agressivo, mas ao cavalo magro, ao punhal, ao chicote de Capitão Vitorino; ao cabriolé, à gravata, ao piano do Coronel Lula – os quais, por sua vez, valem como símbolos das respectivas personalidades (CANDIDO, 1995, p. 78).

 

Entretanto, a função desses elementos que compõem a ambientação do romance não se restringe somente ao fortalecimento da caracterização psicológica das personagens, mas também, contribui na formação da seqüência lógica do enredo.

A égua do Capitão Vitorino, por exemplo, tem uma ligação muito estreita com função de formação de verossimilhança da personagem. O autor busca exprimir aspectos físicos e comportamentais da personagem através do animal quando este atua como um reflexo da mesma e vice-versa. Essa “égua rudada” do capitão que, nas palavras do autor: “[...] mostrava os ossos, a sela velha, roída, a manta furada, os freios de corda [...]. A égua vazava água por um dos olhos e a brida arrebentada interrava-lhe de boca adentro” (REGO, 1997, p. 24), que também “era aquele passo preguiçoso, aquele se arrastar de ossos velhos” (REGO, 1997, p. 25), complementa a caracterização física de seu dono, cuja “cara larga do velho, toda raspada, os cabelos brancos saindo por debaixo do chapéu de pano sujo, davam-lhe um ar de palhaço sem graça” (REGO, 1997, p. 24).

Um animal pode enfatizar a lógica do texto despertando no leitor uma concepção mais próxima do sentido que a obra pretende expor. “Uma rola-cascavel arrulhara à boca da noite como um suspiro”, por exemplo, faz com que o elemento “animal” auxilie na composição do cenário e do contexto. Observemos no pensamento da Sinhá, mulher do seleiro Zé Amaro, como os animais atuam na sua exposição psicológica, compondo o ambiente sombrio:

 

[...] Zeca dormia na rede, com a boca aberta. Não quis olhar para o marido naquele estado. Ficou com medo de olhar aquela cara deformada. Mas precisava fazer alguma coisa. Seria verdade o que Floripes espalhara? A noite começava a dar sinais de sua vinda. Morcegos cruzavam o céu. Dariam mais tarde em cima dos jenipapos maduros. A filha no quarto não dava sinal de vida. Era como se estivesse só no mundo, cercada pelo silêncio do mundo. As galinhas se aquietavam no poleiro, e o bode começou a berrar. Lembrou-se que não tinha deixado água no caco do animal. Foi procurar uma caneca d’água na cozinha. Tudo estava numa escuridão de breu. Acendeu a lamparina e, sem saber como, veio-lhe uma vontade aguda de gritar, de gemer, de chorar alto. A luz clareou a cozinha. Então apareceu-lhe a cara enorme de Zeca no corredor, a cara como de um bicho. Largou a candeia no chão e correu para fora.

- Sinhá, o que tu tens, mulher? Sou eu (REGO, 1997, p. 91-92, grifos nossos).

 

Nas proximidades da casa de José Amaro, os animais interagem nitidamente com as personagens, como no trecho abaixo referindo-se aos minutos que se seguem após a discussão do seleiro com Floripes, o negro apadrinhado pelo Coronel Lula de Holanda, proprietário das terras em que o mestre morava:

 

E foi andando para o lado do negro. A voz do mestre era trêmula, e Floripes, quase que correndo, foi fugindo da fúria desencadeada. Lá longe, no fim da estrada, gritou para o mestre José Amaro:

- O meu padrinho vai saber disto.

O mestre, sentado, estava lívido, corria suor do seu rosto inchado. Tinha passado por ele um demônio.

- Mulher, me dá um copo d’água.

O canário cantava na biqueira, na mansa manhã de sol enublado. Um bando de rolinhas corricavam por cima da grama. O bode espichado por debaixo da pitombeira, quieto. Tudo quieto, tudo na paz, menos o coração do mestre José Amaro que batia com arrancos de açude arrombado (REGO, 1997. p. 91-92, grifos nossos).

 

Como podemos observar, tudo parece estar em seu devido lugar, os animais reforçam a idéia de natureza em harmonia direta com o ambiente e diretamente contrária ao estado de espírito do mestre. Nesse sentido, outro trecho que pode ser tomado como exemplo é aquele que ocorre após melhora do mestre José Amaro, um dia após ter surrado sua filha Marta com uma sola e, logo em seguida, ter chorado, “num pranto de menino apanhado”:

 

O canário cor de gema de ovo trinava na biqueira, naquele mesmo lugar onde ficava sempre. E pela voz do pássaro, pelo canto que lhe amaciara os ouvidos na vida passada, a vida presente foi chegando para o mestre. Sabia que não morria mais (REGO, 1997, p. 96, grifos nossos).

 

Outra personagem feita da estreita relação entre os animais e as pessoas é José Passarinho, cujo nome já sugere que sua condição seja aquele constante cantar, como o canário da biqueira, que tem a função de quebrar o silêncio quando não há diálogo entre as personagens:

 

A cantoria era triste, como de quarto de defunto. O negro largava a alma na beira do rio:

Quem matou meu passarinho

É judeu, não é cristão,

Meu passarinho tão manso

Que comia em minha mão.

A voz do cachaceiro tocara o coração das mulheres (REGO, 1997, p. 61, grifos nossos)

 

 

A personagem José Passarinho, na sua composição aproxima-se àquela de um pássaro, inclusive porque à ele é dado um “simples existir”, onde as fronteiras entre o “ser animal” e o “ser humano” não estão claramente definidas. Esse tipo de relação com os animas, onde o comportamento humano se assemelha em determinados aspectos ao comportamento dos animais, pode ser observado também de forma invertida quando o escritor sugere que os animais é que atuam como as personagens humanas, a exemplo do último parágrafo da primeira parte do livro:

 

Já iam longe com o corpo, quando o sujeito se foi. O mestre não pensava em nada. Havia dentro dele um vazio esquisito. Teve medo de voltar para dentro de casa. E ali mesmo, por debaixo da pitombeira, baixou a cabeça e chorou como um menino. O bode manso chegou-se para perto dele e lambeu suas mãos. E começou a berrar, como se tivesse coração de gente (REGO, 1997, p. 120, grifo nosso).

 

No conjunto dessas interações entre as personagens e animais, no ambiente rústico onde o enredo é desenvolvido, podemos observar que estes estão ali inseridos pelo autor (pássaro, bode, porcos, burro, cavalo, galinha, galo, cachorro, sapo, gado, raposa, morcego, preá, mosca, vagalume) na função de elementos que fortalecem o desenvolvimento da narrativa, indo muito além de simples elementos figurativos. Os animais nesta primeira parte de Fogo Morto fazem parte do romance tanto quanto as pessoas que transitam por aquelas linhas de José Lins do Rego.

 

 

II. Trabalho, mando e obediência: as profissões na primeira parte de Fogo Morto

 

Odirlei Dias Pereira

 

Zé Amaro, "um velho de aparência doentia, de olhos amarelos, de barba crescida" seleiro dos velhos tempos, trabalhava na porta de sua casa a beira da estrada. Durante o transcorrer do romance, a idéia de um cruzamento nos é dada, uma vez que grande parte da ação e a vivência de praticamente de todos os personagens ali se cruzam e se desenvolvem.

 

O trabalho exercido pelo personagem é visto por ele mesmo como profissão de uma pessoa que "é pobre, é atrasado, é um lambe sola" (REGO, 1997, p. 17), que vive sob a proteção de um senhor de engenho e lhe deve obediência e submissão. Seu ofício influi em suas características físicas: "batia forte na sola, batia para doer na sua perna que era torta" (REGO, 1997, p. 19). Desta maneira podemos dizer que o autor estabelece uma íntima ligação entre trabalho e adjetivação do personagem:

 

Ali estavam os seus instrumentos de trabalho. Pegou no pedaço de sola e foi alisando, dobrando-a, com os dedos grossos. A cantoria dos pássaros aumentara com o silêncio. Os olhos do velho, amarelos, como que se enevoaram de lágrima que não chegara a rolar. Havia uma mágoa profunda nele. Pegou o martelo, e com uma força de raiva malhou a sola molhada. O batuque espantou as rolinhas que beiravam o terreiro da tenda. (REGO, 1997, p. 15).

 

Inclusive nas horas de descanso, bem como durante as refeições, era impossível esquecer seu ofício pois "o cheiro de sola nova enchia a casa" (REGO, 1997, p. 31).

 

A lógica do trabalho está totalmente inserida e presente durante as falas e as ações do personagem Zé Amaro. Neste sentido, o personagem critica seu compadre Capitão Vitorino que, segundo pensava, não dava sentido à própria vida porque não "cuidava" de nada: "Era demais aquela vida sem rumo, aquele andar de um lado para o outro, sem fazer nada, sem cuidar de coisa nenhuma" (REGO, 1997, p. 26). Entretanto, Capitão Vitorino se julgava demais importante para ser igual ao seleiro, era um capitão: "O velho Vitorino olhava para o compadre como para um inferior. Era um seleiro, um mestre de ofício que gente branca como ele não devia levar em conta" (REGO, 1997, p. 26). Ou seja, ser branco aqui equivale a não ter de trabalhar, atividade de pobres e negros.

 

O julgamento moral que Zé Amaro faz de capitão Vitorino, toda a comunidade faz em relação ao seleiro a partir do momento em que ele começa a fazer seus passeios noturnos, sem função alguma. Ou seja, a ausência de função específica somada ao "gênio terrível, e um falar duro com todo mundo", aos olhos amarelados, à sua feição doentia e a barba comprida, faz com que a vizinhança passe a dizer que José Amaro está virando lobisomem. Como pensava a sua mulher Sinhá: 

 

 

Zeca gostava de sair de noite, de passar horas esquecidas, andando a pé pelos esquisitos, pelos lugares desertos. E o povo inventava a história do lobisomem.[...] E por cima de tudo dera o seleiro para ao perder pelos campos, para vagabundear pela estrada, pelos caminhos ermos (REGO, 1997, p. 67).

 

 

Numa de suas andanças noturnas, Zé Amaro sofre um "passamento". Após este fato, Sinhá passa a desconfiar do mestre, a pensar que o "povo" tem razão, conforme confessa à comadre Adriana:

 

 

- Comadre estou com medo do Zeca. [...]
- Medo de quê, comadre? [...]
- Zeca deu para sair de noite, e quando ele volta, só queria que a senhora visse como entra. Vem como se tivesse um ente dentro dele. Vira na rede, fala só, dá grito no sono. Ele não era assim, comadre. E no outro dia é um gritar de doido. Briga com a filha, descompõe-me. É outra criatura. (REGO, 1997. p. 88).

 

 

Mal falado, com fama de lobisomem, Mestre Amaro torna-se cada vez mais só. Mas, além destas amarguras padece de outra referente à sua própria profissão: Mestre Amaro estaria perdendo a sua clientela que, como observa logo no início do romance, começa a dar mais valor ao produto manufaturado - principalmente importado - que ao seu produto artesanal: 

 

 

Estou perdendo o gosto pelo ofício. Já se foi o tempo em que dava gosto de trabalhar numa sela. Hoje estão comprando tudo feito. E que porcarias vendem por aí! Não é para me gabar. Não troco uma peça minha por muita preciosidade que vejo. Basta lhe dizer que seu Augusto do Oiteiro adquiriu na cidade uma sela inglesa coisa cheia de arrebiques. Pois bem, aqui esteve ela para conserto. Eu fiquei me rindo quando o portador do Oiteiro me chegou com a sela. E disse, lá isto disse: "Porque seu Augusto não manda consertar esta bicha na cidade?" E deu nela um preção. Se eu fosse pedir o que pagam na cidade, me chamavam de ladrão (REGO, 1997, p. 12).

 

 

Devido a este fato, Zé Amaro sente seu trabalho artesanal desvalorizado e por conseqüência sua profissão. Agora "estava trabalhando para camumbembes. Era o que mais lhe doía. O pai fizera sela para o imperador montar. E ele ali, naquela beira de estrada, fazendo rédea para um sujeito desconhecido" (REGO, 1997, p. 17).

 

Além do aspecto da substituição de sua mão de obra, o agregado Zé Amaro tem plena consciência de sua posição social face à classe dominante dos senhores de engenho que, mesmo em decadência, como o Coronel Lula de Holanda, ainda conservavam alguns dos poderes e privilégios típicos dos donos da terra: 

 

 

Dona de terras e de escravos, essa elite era senhora de amplos poderes sobre todas as pessoas que viviam na fazenda - familiares ou não. Seu domínio muitas vezes extrapolava as fronteiras de sua propriedade. Sua palavra tinha força de lei, e contestá-la era um abuso imperdoável (SILVA, 1992, p. 54).

 

 

Submissão e obediência é esperado por parte dos senhores de engenho em relação aos agregados de suas fazendas que, apesar de livres, eram identificados como "sendo gente de alguém". O agregado deve ao senhor de engenho lealdade e fidelidade absoluta numa relação pessoal e direta. Por estar sendo despedido das terras do Coronel Lula, Mestre Amaro amarga também a condição daquele que, velho e doente, sem condições de sobreviver do próprio ofício, está fadado à penúria. Mestre Amaro ousara criticar o dono daquelas terras em que vivia desde menino.

 

 

É neste momento de grande angústia e perda que o Mestre Zé Amaro encontra uma nova utilidade, aquela que lhe traria alegria: torna-se informante de Antonio Silvino, cangaceiro admirado por ele e que acredita ser o único capaz de fazer justiça aos mandos e desmandos dos senhores de engenho. "Agora tinha um motivo para o resto dos seus dias. Pouco se importava que a filha fosse um fracasso, que a mulher não lhe desse coisa alguma." (REGO, 1997, p. 79).

 

 

- Sinhá, o aguardenteiro Alípio está aí. Vai matar duas galinhas e preparar para ele levar para o capitão Antonio Silvino.
A velha Sinhá tomou um susto com a ordem do marido.
- E tu viste o homem Zeca?
- Não, estão acoitados lá em cima na catinga. E diz Alípio que os homens estão mortos de fome. [...] O homem se foi, e na casa do mestre José Amaro ficou o terror na sua mulher, e uma sinistra alegria no coração do seleiro. Ele matava galinha e dava para o capitão Antonio Silvino que mandava em toda a cambada de senhores de engenho.[...] O mestre botou a banca na porta, e foi se sentar para o trabalho. Estava como nunca estivera contente. Os cabras tinham enchido a barriga com galinha do seu terreiro (REGO, 1997, p. 67, 68 e 70 ).

 

 

As marcas do ofício

 

 

Apesar da recente liberdade auferida no tempo do romance, os negros eram considerados inferiores aos brancos segundo o livro deixa entrever em diveras situações. E isto pode ser notado também pelas profissões por eles exercidas. Os ex-escravos ocupam posições de serviçais e trabalhadores braçais, atividades similares exercidas por eles durante o período em que eram cativos. Em contrapartida, os brancos ocupam posições de trabalho "mais valorizadas" como por exemplo cargos públicos, delegados e juízes.

 

O exercício de profissões serviçais pelos ex-escravos estava tão arraigadas a eles que passava a constituir parte de seus nomes próprios, como por exemplo Pedro Boleeiro e Lucindo Carreiro . Nota-se que as profissões acompanham o primeiro nome, sempre como a letra inicial maiúscula. Outro fato a ser considerado é a simplicidade dos nomes dos ex-escravos. Esta característica não é percebida com as profissões exercidas por brancos que, freqüentemente, são identificadas pelo nome do engenho que possuem ou pela patente do exército: "Era o coronel Luís César de Holanda Chacon, senhor de engenho de Santa Fé" (REGO, 1997, p. 19, grifos nossos). Acompanhado de um nome "pomposo", segue-se imediatamente também iniciados com letras maiúsculas o nome do engenho do qual é proprietário.

 

O mesmo não ocorre com o "pintor Laurentino", cujo nome (Laurentino) é freqüentemente precedido pela sua profissão (pintor). Podemos entender desta forma que cada profissão caracteriza intrinsecamente um personagem e o particulariza em todos os aspectos: nomes, trejeitos, modos de falar e agir.

 

Existe também o fomento do estereótipo da profissão exercida pelo personagem Henrique - barbeiro - que aparece uma única vez nesta primeira parte do romance, para informar Zé Amaro sobre o paradeiro do capitão Antonio Silvino. Após o diálogo entre os personagens, o narrador assim diz:

 

 

O barbeiro Henrique pararia no Santa Fé, no Santa Rosa, antes de chegar na sua tenda de São Miguel. José Amaro não gostava muito dos seus modos. Homem sério não tinha que andar alcovitando a ninguém. Diziam que o dr. Juca do Santa Rosa servira-se dele para negócio de mulher. Mas a verdade era que todos o procuravam" (REGO, 1997, p. 72).

 

 

Diálogos de trabalho

 

 

Freqüentemente os diálogos entre as personagens têm por temática o trabalho. Ora questionam-se mutuamente sobre este tema, ora justificam o seu "ir e vir" por ele. Sobretudo diante da casa de Mestre Amaro, os diálogos derivam sempre para este assunto. Fica claro que cada personagem deve desempenhar uma função no enredo, assim como cada indivíduo deve ser útil na sociedade. É dessa maneira que ocorre o primeiro diálogo entre Capitão Vitorino e o Mestre Zé:

 

 

- Muito trabalho, compadre José Amaro?
- Como de costume, compadre Vitorino. Como de costume.
- Eu também ando que não tenho descanso... (REGO, 1997, p. 26).

 

 

Na cozinha do engenho Santa Fé "a velha Adriana cosia as partes dos frangos que gritavam nas suas mãos", enquanto a "negra Mariana" comenta: "Comadre, o mestre José Amaro esteve aqui trabalhando no carro..." (REGO, 1997, p. 37). Adriana, ao regressar do engenho Santa Fé, passa pela porta do seleiro José Amaro, este quando a viu levantou-se: "- Boas tardes, compadre./ - De viagem, comadre Adriana?/ - Estou voltando do Santa Fé. Estive fazendo serviço para dona Amélia" (REGO, 1997, p. 41).
É interessante notarmos também que durante o desenvolver do diálogo de algum personagem com o Mestre Amaro, este continua trabalhando. Explicitam-se os rudimentos da racionalização do tempo pela lógica do trabalho. Dizia José Passarinho ao mestre:

 

 

- Mestre Zé, a coisa no Pilar está pegando fogo. Seu Vitorino já andou ontem por lá, com uma praça atrás dele como ordenaça. Está dizendo que o doutor juiz quer botar o major Quinca Napoleão na cadeia, por causa da porrada que deram na cabeça do velho. Ô Velho doido, danado! Ele estava dizendo na porta da cadeia que cosia gente na faca. Está de punhal, mostrando a todo mundo.
O Mestre José Amaro trabalhava silencioso. José Passarinho parou de falar (REGO, 1997, p. 51).

 

 

O ofício de ser passarinho

 

 

Ainda no que diz respeito a funções como formas de adjetivação de personagens, temos o personagem José Passarinho que, assim como o próprio nome sugere, "assemelha-se a um passarinho". Inesperadamente aparece em algumas passagens da obra, trazendo ou levando alguma informação ou fuxico:

 

 

A mulher do seleiro pagou-lhe e ele arrumou-se para sair quando apareceu na estrada José Passarinho, velho negro que vivia constantemente embriagado.
- Bom dia, pessoal do bom Deus.
E voltando-se para o mestre:
- Então, mestre Zé, está enchendo a barriga deste gringo?
O italiano enfureceu-se:
- Cala a boca, porco.
- Porco é tua mãe, filho de uma égua.
Mas passarinho não se deu por achado:
- Quem me vinga é o capitão Antonio Silvino. Estão dizendo por aí que tu anda dando aviso a tropa. (REGO, 1997, p. 50, grifos nossos).

 

 

A "cantoria" de José Passarinho é sempre notada por algum personagem central, entremeando as conversas, denotando seu vôo por entre os demais personagens e suas ações: "De muito longe escutava-se a voz de Passarinho no canto" (REGO, 1997, p. 76). Ou ainda: 

 

 

E continuaram em silêncio no serviço [...] Ouvia-se a cantoria de um homem mais para o lado do Santa Fé. Era Passarinho, no serviço de uma vazante, no trabalho que para ele era um fim de mundo. A cantoria era triste, como de quarto de defunto. O negro largava a alma na beira do rio (REGO, 1997, p. 61).

 

 

Trabalho feminino

 

 

As profissões das personagens femininas, de divergentes classes, convergem no que tange à submissão aos mandos dos homens. A mulheres são regidas por padrões de submissão e obediência que denotam a dinâmica hierarquizada no universo açucareiro. Não escapam a esta dinâmica nem mesmo Dona Amélia, mulher do Coronel Lula de Hollanda. Neste sentido, sua situação é a mesma de Sinhá e Adriana. As únicas atividades exercidas pelas mulheres neste trecho da obra são atividades consideradas "tipicamente femininas": cozinhar, cuidar de galinhas, bordados e cuidados em geral com a casa.

 

Mestre Zé Amaro era rude ao dirigir-se a Sinhá, que exercia somente trabalhos domésticos, como dissemos acima, tipicamente femininos, e considerados por ele como vagabundagem: "- Sinhá, bota esta jantar, faz alguma coisa, mulher dos diabos" (REGO, 1997, p. 19). Como dissemos anteriormente criar galinhas e porcos, carregar lenha ou água, por exemplo, era trabalho feminino, portando para Sinhá ou para a filha Marta, considerado por Zé Amaro subalterno e desqualificado. "Viu a filha que chegava com um pote de d'água na cabeça" (REGO, 1997, p. 29). "A velha Sinhá tangia a criação para o poleiro" (REGO, 1997, p. 20).

 

Gostaríamos de deixar claro que o autor não atribui funções domésticas somente às principais personagens femininas, pois a partir delas, ele caracteriza todo o universo feminino que permeia sua obra. Assim, diz o autor: "Uma tarde, porém, a velha Sinhá estava no rio batendo roupa e lá estava também uma mulher da caatinga que ela não conhecia" (REGO, 1997, p. 61). Marta, "aprendeu a ler, tinha um bom talhe de letra, sabia fazer seu bordado, tirar o seu molde, coser um vestido" (REGO, 1997, p. 46). Marta era, enfim, uma moça trabalhadora, como toda boa moça devia ser, e mesmo assim "não havia rapaz que parasse para puxar uma conversa" (REGO, 1997, p. 46).

 

A relação estabelecida entre as personagens Sinhá e Adriana é pautada essencialmente pela vertente do trabalho, reforçando assim a utilidade da relação de compadrio existente entre elas. "Pois compadre, diga à comadre Adriana que apareça. Tenho uns frangos pra castração. É só ela quem sabe fazer destas coisas" (REGO, 1997, p. 27). 

 

 

Tempo de transição

 

 

Após esta análise podemos interpretar o período descrito pela obra como um tempo de mudanças, de alterações drásticas nas relações sociais, quando a decadência da aristocracia rural começa a ceder espaço para um outro setor agro-manufatureiro: a usina. A nova forma capitalista impunha novas formas de organização rural e a revisão da ordem agrário-patriarcal que tinha se organizado através do trabalho escravo. O trabalho livre impunha novos tempos.

 

Entretanto as relações pessoais descritas neste trecho da obra não acompanham essas mudanças que ocorrem no sistema de produção fazendo com que tradições e costumes de um tempo "que já passou" entrem em conflito com as novas regras, principalmente as oficiais.

 

 

III. O coronel e a besta: a função dos animais na segunda parte do romance

 

Elisângela da Silva Santos

 

Os animais na segunda parte do romance, acompanham todo o processo de desenvolvimento e de decadência do Engenho Santa Fé, compondo o mesmo simbolismo que vemos na primeira parte e fazendo a mesma função: dando sustentação ao enredo, construindo elementos da narrativa que lhe reforçam a verossimilhança:

 

O CapitãoTomás Cabral de Melo chegara do Ingá Bacamarte para a Várzea do Paraíba antes da revolução de 1848, trazendo muito gado, escravos, família e aderentes (REGO, 1997, p. 122, grifo nosso).

 

Pertencente à família Cabral do Ingá, o Capitão possuía bens relevantes como faz notar o narrador: os escravos, gados de primeira ordem, moedas de ouro etc. No texto este é o período dedicado à ascensão do Engenho e os animais aqui darão afirmação ao significado das posses.

     Se, como se observou, na primeira parte as comparações entre os homens e os animais são freqüentes, nesta segunda parte a comparação entre escravos e animais é a primeira que salta aos olhos do leitor: “Negro no Santa Fé era de verdade besta de carga.” (REGO, 1997, p. 123, grifo nosso). A comparação é feita no momento de apresentação do perfil do Capitão Cabral de Melo. O termo “besta de carga” é relacionado aos trabalhadores negros como reflexo do senhor do engenho, pois sua figura é caracterizada como sendo um homem trabalhador, duro nas decisões, preocupado e severo também com sua família.

     No auge do desenvolvimento financeiro do Engenho Santa Fé, o Capitão mandara trazer do Recife um piano para sua filha Amélia. Para chegar ao engenho, o instrumento tivera que ser carregado por “muitos negros e ele mesmo a cavalo, no passo vagaroso, vinha atrás dando ordens” (REGO, 1997, p. 123, grifo nosso). A singularidade desse momento dá-se de uma maneira metafórica, pois o Capitão comanda a chegada de um objeto sofisticado, o piano, sobre um animal de grande porte, o cavalo que aparece como representação da hierarquia, direcionando seu olhar a partir de cima em direção a seus escravos.

     O Capitão estava preocupado com sua filha Amélia, pois está já atingira a idade de se casar e, para ele, nos arredores do Santa Fé não havia um marido à sua altura. Dizia que não tinha gastado dinheiro com os estudos para vê-la casada com “camumbembe”: “Para vê-la com um daqueles animais, ele preferia que ficasse toda vida com ele” (REGO, 1997, p. 126, grifo nosso).

     É nesse momento que a personagem de Luís César de Holanda Chacon surge no romance; era um parente de Capitão Tomás. Este vê a possibilidade de um casamento para sua filha pois Luís César de Holanda Chacon “era um rapaz cerimonioso, de boa aparência, trato fino.” (REGO, 1997, p. 126) O casamento é realizado e todos têm a esperança de Lula ser um bom marido para Amélia. Essa esperança depositada no genro logo se transformará e preocupação, pois Lula não atenderá todas as expectativas. O genro de fino trato não tinha trato com a terra e passava as tardes inteiras na sala de visitas ouvindo sua esposa tocar piano. O capitão Tomás se incomodou com tal situação, pois os homens de sua terra não possuíam tal comportamento, estavam acostumados a ter um comando enérgico de suas posses.

Além disso, através de Amélia, capitão Lula pede ao sogro para trazer um cabriolé do Recife. É uma novidade, assim como foi o piano, para os moradores das redondezas. Durante a chegada do cabriolé “braços de negros, de curiosos, empurravam o carro. Para os cavalos cansados havia negros que os substituíam” (REGO, 1997, p. 132). Os trabalhadores negros aqui aparecem novamente comparados aos animais, ou como substitutos da força animal.

     O cabriolé passa a ser um sinônimo de importância para a família do capitão Tomás e, portanto, ele “caprichara na parelha que puxava a sua carruagem”, enquanto “via outros mais ricos do que ele mandando a família para as festas em carro de boi” (REGO, 1997, p. 133). Entretanto, o Capitão se alegra apenas por um tempo com a nova ostentação do genro. A notícia de que sua filha Olívia enlouquecera lhe causa profunda tristeza, fazendo-o envelhecer rapidamente. O abalado Capitão volta à ativa, entretanto, quando sabe da fuga do escravo Domingos:

 

Era moleque (...), de muito boa pinta, de 18 anos, de saúde de ferro”. (...) Todo o antigo Tomás Cabral de Melo ressurgiu para o Santa Fé. Fez-se, então no seu cavalo ruço e com o negro Laurindo saiu atrás de Domingos (REGO, 1997, p. 128, grifos nossos).

    

O dono do engenho, dedica todo seu tempo para encontrar o escravo foragido. Esquece até dos problemas de saúde de sua filha. Visita vários engenhos, até ter a promessa do Barão de Goiana que o escravo voltaria o mais rápido possível. Domingos “volta”, pede perdão ao capitão, porém este ordena que o capataz lhe dê uma surra enquanto ouve sua filha tocar uma valsa ao piano.

     Após essas grandes agitações na estrutura do engenho, Amélia informa a todos sobre sua gravidez. Notícia que agradou a família. Porém, é também quando o coronel fica sabendo que o negro Domingos fugira outra vez, agora levando dois cavalos de sela, e abala-se profundamente. Sai em busca do seu trabalhador acompanhado do genro e de outros dois escravos. Não encontra Domingos e sente-se ofendido em seu orgulho e honra a ponto de cair na mais profunda e irreversível depressão:

 

O Capitão Tomás vivia como se tivesse sido atacado de doença grave. Apareceu-lhe um capitão-de-mato com seu negro fugido e ele não dera a menor importância ao fato. Deitado na sua rede, calado, passava os dias inteiros alheado por completo de tudo. O velho tinha sido ultrajado, era um homem que se considerava sem honra... (REGO, 1997, p. 138).

 

     Com o Capitão Tomás sem ânimo para nada, nem para os negócios, Dona Mariquinha tomara as “rédeas” do engenho. Fato que denota um choque no modelo patriarcal, sob o qual a sociedade estava organizada.

     A última vez que o capitão saiu de casa, “andou para estrada. Todos os passarinhos da cajazeira cantavam para ele. E não ouvia os cantos dos seus passarinhos” (REGO, 1997, p.138). Pela primeira vez, os animais não aparecem simbolizando a imponência do Capitão. Aqui, ao contrário, fazem nexo expressivo intensificador do sofrimento e dor do Capitão Tomás em seu sentimento de desilusão.

     O Capitão Tomás morre e a briga entre Dona Mariquinha e genro se inicia, pois este exigia a maior parte dos bens do engenho, acabando com a morte de Dona Mariquinha. Agora só permanecem no Engenho Santa Fé, Seu Lula, Dona Amélia, Olívia e Neném, a filha do casal.

     As brigas de Dona Mariquinha e Lula contribuíram para que despertasse o ódio de Amélia pelo marido: “(...) coisa que nunca sentira, começou a odiar aquele homem sem piedade, aquele monstro que a maltratava com tamanha crueldade” (REGO, 1997, p.144, grifo nosso). Neste sentido, é possível fazer um paralelo entre a primeira e a segunda parte romance com relação às esposas dos protagonistas: Amélia e Sinhá. Esta, no desenrolar da história, julga seu marido Mestre Amaro, como um desalmado, passando a temê-lo, a considerá-lo um lobisomem, assim como as outras pessoas do Pilar. Dona Amélia, assim como Sinhá, sentia-se casada com uma besta-fera.

     Com a abolição dos escravos, o Santa Fé decai efetivamente, pois os negros vão abandonando o engenho. A decadência também aparece na caracterização dos animais a partir desse momento. Ao mesmo tempo Seu Lula tenta manter uma imagem de seus símbolos de poder e riqueza, pois o cabriolé continua sendo utilizado pela família, principalmente quando iam para as missas: 

 

As rodas do cabriolé enterraram-se na areia fofa e os cavalos corriam e as campainhas acordavam os pássaros dormindo, espantavam os calangos. Uma raposa cortou a estrada aos saltos, e os faróis do carro pareciam olhos que se encadeavam na luz branca da lua (REGO, 1997, p.157, grifos nossos).

 

Nesse trecho o autor explicita um contraste entre a natureza e o homem, pois este tenta impor-se e intimidá-la. A decadência é evidenciada pela mudança dos cavalos que passam a parelhar o cabriolé:

 

Os cavalos já não eram aqueles dois belos cavalos ruços que pareciam de história de Trancoso. A nova parelha do cabriolé não apresentavam aquela beleza de antigamente. Eram dois pobres quartaus que podiam ser duas bestas de carga. Em todo o caso teriam força bastante para arrastar a família do Santa Fé pelas estradas (REGO, 1997, p.157, grifos nossos).

 

Este arrastar da carruagem com dois cavalos pobres é equivalente ao da família e do engenho no seu processo de substituição pela usina... uma espécie de morte lenta, afogada no simulacro do que um dia fora em termos de riqueza e poder.

 

 

 

VI. A cosificação do poder: os objetos na segunda parte de Fogo Morto

 

Camila Vedovelo

 

 

José Lins do Rego descreve em “ O Engenho de Seu Lula”, segunda parte de seu romance Fogo Morto, toda a trajetória do Engenho Santa Fé, sua construção, consolidação e decadência. Decadência esta que se dá pela chegada da industrialização e  da modernização representada pelas usinas.

 

Em conjunto com a industrialização, com as mudanças econômicas e tecnológicas que estão se colocando naquele período, há também uma mudança de valores morais e das formas de socialização. As mudanças econômicas se dão de forma mais acelerada que as mudanças de valores. O livro mostra um momento de transição onde há nitidamente um choque entre o tradicional e o novo.

 

Esse choque é posto por José Lins do Rego de várias formas e uma dessas maneiras é a relação simbólica colocada pelos objetos que aparecem principalmente durante a segunda parte de seu romance.

 

A família da Casa Grande do Engenho Santa Fé é o estereótipo da família patriarcal, com valores tradicionais e católicos arraigados. O Capitão Tomás Cabral de Melo, construiu o engenho através de trabalho árduo e conseguiu se colocar como um dos grandes senhores de engenho da região. Através da consolidação de seu engenho, Capitão Tomás ganha o respeito de toda a comunidade. A consolidação do Engenho Santa Fé e o auge da riqueza e do respeito é demarcado pela chegada do piano de cauda que fora comprado para sua filha que tinha acabado de chegar da capital.

 

A chegada do piano é feita de forma ritual. Rompendo caminhos como algo nunca visto, o piano tem em si a simbologia da consolidação do Santa Fé como um grande engenho. É a chegada da riqueza, do poder.

 

A partir da chegada do piano, o Capitão Tomás passa a ter força política. É um senhor de engenho respeitado em toda a região, chegando ao ponto mais alto de sua vida.

 

Amélia, a filha de Capitão Tomás, casa-se com seu Lula, um rapaz da cidade com estudo e requinte. O genro do Capitão Tomás traz da cidade seu cabriolé que se mostra muito mais que um mero meio de transporte: ele demonstra o refinamento vindo da cidade em contraposição à brutalidade do campo e, como escreveu José Lins do Rego, “O cabriolé dera muita importância ao Santa Fé” (REGO, 1997, p.133). A família do Santa Fé se posicionava acima das outras da região, até mesmo das mais ricas devido ao cabriolé e ao status que este lhes dava.

 

Capitão Tomás após sofrer uma grande decepção por não conseguir recuperar um escravo que fugiu entra num estado depressivo gerando uma transição de mando do engenho, primeiro para D. Mariquinha ainda enquanto Capitão Tomás estava vivo e, após a sua morte e de D. Mariquinha, para Seu Lula. A depressão do Capitão Tomás e a conseqüente transição de mando é representada pela rede na qual Capitão Tomás se encontra convalescente. A rede assume aqui a simbologia da impotência de Capitão Tomás, da perda da sua força.

 

Após a morte de Capitão Tomás, Seu lula mostra toda a sua ambição ao querer herança das terras. O cabriolé é visto nesse momento pelo povo do Pilar como um significante que contém em si como significado toda a ambição contida em Seu Lula.

 

Com a morte de D. Mariquinha, Seu Lula no poder e a abolição dos escravos, o Engenho Santa Fé começa a entrar em decadência. Seu Lula, que a partir desse momento passa a ser conhecido como Capitão Lula de Holanda, tem todo o refinamento e requinte da cidade, porém lhe falta a bravura e o braço forte do homem do campo. A partir da decadência do Engenho Santa Fé, o cabriolé traz para si a representação da manutenção da tradição, apesar das mudanças dos valores e das mudanças estruturais e econômicas que estão se dando.

 

Capitão Lula de Holanda tenta de maneira desesperada manter a imponência que um dia tivera o Santa Fé e sua família. Essa tentativa de se manter como família tradicional e de grande riqueza é mostrada além do constante uso do cabriolé, pelas jóias que as mulheres do Santa Fé têm que ostentar.

 

A decadência total do Santa Fé é evidenciada quando o piano se cala: o fim da riqueza e do poder do Santa Fé é o emudecimento do piano.

 

 

V. Os objetos como elogio da metáfora em Fogo Morto

 

José Milton Pereira

 

No mundo de Fogo Morto, composto de Mestre Zé Amaro, de Lula de Holanda Chacon, Capitão Tomás Cabral de Melo, D. Amélia, o cangaceiro Antonio Silvino, Capitão Vitorino, há um outro mundo, mais subterrâneo, feito de outra medida, que são os objetos. O piano, o cabriolé, a peia, o tronco, o cipó-de-boi, a moenda, o martelo, o espelho, e até o negro, participam da engrenagem do engenho desvelando uma linguagem própria desses seres que a primeira vista não passam de coisas sem alma.

 

O lirismo da ostentação: o piano

 

     O piano arrumava-se na casa-grande sob dois modos de ser: por um lado ele garantia seu lugar por privilegiar a ostentação, a posição, a posse. Por outro, através das mãos de Amélia, o piano diluía sua coragem de segredar nas coisas do engenho uma outra alma. Substância que persiste em ser desagregação de uma ordem para instaurar outra, do piano irrompia o deleite que fazia com que o mundo de multiplicidade que era aquele engenho renunciasse às hierarquias do “meu”, de modo a instaurar a unicidade de uma outra alma:

 

D. Amélia tocava as suas valsas com o coração, as varsovianas tomavam conta de suas mãos, de seu sentimento. O capitão dormia com a filha na música, aos domingos, com os negros parados, com a terra dando vida às sementes. A casa-grande do Santa fé, naquela tarde de concertos, tinha outra alma (REGO, 1997, p. 124-125).

 

Símbolo de poder, o piano, que fora mandado trazer da capital pelo capitão Tomás para servir à felicidade de sua filha Amélia, roubava a atenção dos que viviam na casa, não só do Capitão como também de D. Mariquinha e até mesmo dos escravos que paravam para ver/ouvir esse modo de equilibrar no ar o agora-instante como quem adivinha por inteiro no que é a vida em si.

     Quando ela conhece o primo Luís César de Holanda Chacon (aparentado de gente que lutou na revolução de 1848), que viera de Recife para pedir a sua mão, o piano tomou-se de outra forma: era necessário instrumentalizar-se de uma vontade mais calma, de toques mais leves, de rubor mais sutil:

 

Agora o piano tinha mais sentimento, as varsovianas soluçavam, os dedos da moça eram mais leves [...]. Nunca aquele piano falava com tanto sentimento. Amélia dedilhava como uma fada [...] (REGO, 1997, p. 126-127).

 

No entanto, apesar da força da leveza do qual o piano se nutriu na partitura daquele instante fazendo as coisas da casa tomarem-se de outra respiração, e até de outra imortalidade, Luís César de Holanda Chacon, naquele dia fora embora sem fazer o pedido de casamento. Assim, como tudo que se cala e deixa apenas resíduos de memórias para servir a uma outra posteridade, o piano calou-se triste como o olhar do Capitão quando soube que Olívia, sua outra filha, adoecera.

Símbolo também de força e ostentação que se irradia para além do engenho, o Capitão Silvino, líder de um bando de cangaceiros, quando ocupou o engenho, fez valer essa verdade. Atrás do pote de ouro, que diziam haver na casa-grande, começou a vasculhar por toda a casa: os móveis, os retratos da parede e até o piano:

 

Estenderam no meio da sala o piano de cauda que o capitão Tomás trouxera do Recife. Parecia um grande animal morto, com os pés para o ar. Um cangaceiro de rifle quebrou a madeira seca, como se arrebentasse um esqueleto (REGO, 1997, p. 227).

 

Um tempo se arrebentou naquele chão da casa-grande consumando uma verdade já a muito anunciada: o engenho acabou. O piano, escancarado no meio da sala feito silêncio inumerável respira fundo a desagregação de uma ordem que imprimiu por um longo tempo a hierarquia da moral do senhor de engenho.

 

O delírio da ostentação II:  o cabriolé

 

O capitão Tomás Cabral de Melo, como gostavam de dizer, era homem simples, mas que não se dispensava em mostrar aos senhores de engenho do Ribeira, que não era camumbembe. Tinha filha que tocava piano e genro que possuía cabriolé.

 

     Novidade para os olhos entreabertos não só do capitão Tomás, mas também de toda aquela gente que inventariava no cotidiano do engenho as formas do ser-escravo, dos da casa, da família, etc, a chegada do cabriolé ao engenho foi comparado em igual medida à chegada do piano.

 

O piano chegou e logo foi ocupando um lugar de destaque na sala da casa. Em sua imobilidade absoluta, imprimiria outras formas de movimentos, como os que fazem com que as escravas da cozinha espichem o ouvido. Ou ainda, demarcaria na experiência do olhar de longe o modo como D’Amélia movimentava os dedos no piano assim como também o olhar do capitão que se rouba a si mesmo para ir além da rede pendurada no alpendre. Apesar de, em princípio, ter sido contrário a compra, o capitão Tomás, assim que o cabriolé chegou ao engenho, apoderou-se de uma satisfação sem outra medida que a própria medida da felicidade:

 

 

Corriam os cavalos ligeiros e o mundo para o capitão Tomás se parecia com aquele mundo que ele sentia quando Amélia tocava o piano de som tão bonito (REGO, 1997, p. 132).

 

 

Ora, o cabriolé veio a dar importância ao Santa Fé. Enquanto o piano imprimia naqueles que o ouviam uma interioridade outra para além da relação de opressão entre o senhor e o escravo, homem e mulher, o cabriolé, em seu desfile inédito, denunciava sob os olhares atentos das pessoas do campo e da cidade, o sabor da ostentação. O cabriolé veio então a se tornar objeto de visita aos outros engenhos, de curiosidade, de luxo e até de missa. Assim, mostrando uma fé tão fervorosa que chegava a colocar em atenção os entes da casa, até mesmo os escravos, todo domingo Lula de Holanda Chacon, religiosamente ia a missa. Na vila, ninguém anunciava a chegada do Capitão, afinal, nem precisava, o cabriolé era dotado de um mecanismo de campainha que, agregado ao luxo, vinha compor na manhã de domingo um enredo de festa aos olhares que se achegavam a janela ou saiam as ruas para ver, ouvir e acompanhá-lo. Outras famílias mais ricas que o Capitão Tomás iam a missa, adoravam o mesmo Deus, rezavam-se na mesma oração mas chegavam de carro de boi.

 

     Mas, nada é tão permanente que não encontre um tal limite para onde devem repousar toda pretensão de eternidade. Assim, antes de o capitão Tomás morrer, já corria a fama de Lula de Holanda de ser um maltratador de escravos. Quando tal fato aconteceu, essa fama deixou toda a ala de escravos em suspenso, principalmente quando o povo soube que o genro queria apenas o dote da filha. Força simbólica, força de espanto, força de riso, de festa, de admiração, o cabriolé passou a ser olhado então como o lugar do mal. Dele irradiava principalmente a surra que o moleque Domingues levara:

 

O cabriolé do genro mau começou a fazer mal ao povo. Bastava ouvi-lo, com as campainhas, para que a imagem do genro sem coração, do genro cruel, aparecesse para toda a gente [...].O capitão Lula de Holanda, com sua parelha de ruços, trepado na sua carruagem, chegava para as missas de domingo como um príncipe. Trazia o boleeiro as duas almofadas de seda para ele e a mulher se ajoelharem. O povo olhava para aquele luxo com prevenção. Fidalgo de porcaria. Viera de Recife com a roupa do corpo e ali parecia que tinha o rei na barriga (REGO, 1997, p. 143 e 146).

 

O que estava ainda no horizonte agora está tão perto que até se adere a verdade do tato. Com a abolição, o engenho do Capitão Lula de Holanda entrava em profunda decadência. As pessoas se aproximavam dos escravos para ouvir as histórias de maus tratos aumentando ainda mais sua fama. Mesmo assim, as pessoas se aproximavam do cabriolé quando chegava à missa, mas agora com uma certa suspeita. Já não havia novidade em imprimir no solo da boca um viés talvez de espanto. Em vez do espanto, da festa, da admiração, as pessoas começavam a trazer na membrana do olhar um certo teor de ódio, de indignação:

 

 

Quando o carro do capitão Lula de Holanda passava, corria gente para ver o monstro, todo bem vestido, com a família cheia de luxo, que ia para a missa (REGO, 1997, p. 148).

 

Com a abolição, quase já não restava nenhum trabalhador negro no engenho. A desagregação tomava a vez e já assumia o comando das coisas no Santa Fé: no modo como agora canavial produzia apenas o suficiente para dizer que a morte, iminência já visível, inaugurava na mecânica da moenda um silêncio sem volta. Tudo agora era matéria de ontem. Naquele engenho já não havia dinheiro para repor o que o tempo anula sem piedade. Era necessário consertar as correias da parelha, a roda, trocar os cavalos, mas como?

 

Na porta de lado da igreja ficava o cabriolé, que os moleques cercavam como se nunca o tivessem visto. Os cavalos já não eram aqueles dois belos ruços, que pareciam de história de Trancoso. A nova parelha do cabriolé não apresentava aquela beleza de antigamente. Eram dois pobres quartaus, que podiam ser bem duas bestas de carga (REGO, 1997, p. 159).

 

O delírio da opressão: o negro

 

     O negro pertencia às coisas do engenho como um objeto por excelência. O capitão contava os negros como fazendo parte de seus outros pertences como o carro de boi, a moenda, as sementes, por exemplo. Um negro deve apresentar feições bem lapidadas bem ao gosto do olhar opressivo dos senhores de engenho. Eis que uma roda de carro de boi obedecia bem ao seu destino: ser roda de boi. Foi destinada para fazer parte da engrenagem de um carro de boi, que por sua vez serve para levar a cana-de-açúcar de um lugar para outro. Foi feito de tal modo para que não se quebre à toa, feito da dureza do sólido. Mas quando se quebra é necessário receber reforço novo, pelas mãos caprichadas de Zé Amaro em tempos de decadência. Um negro é preciso também estar arrumado, lapidado, mas não com os instrumentos de Zé Amaro como o seu martelo, porque este foi feito para respingar o labor de sua angústia para dentro da casa, para o relevo da porta, para o meio das panelas de Dona Sinhá e até para o candeeiro quando a noite adentrava feito fome veloz na interioridade insana de Marta.

Assim, é preciso fazer movimentar a engrenagem do engenho, que não se resume em compor-se de estacas que demarcam o território do meu e do outro. Também não se resume em enfileirar à vista dos olhares o facão com que se inaugura no caule da cana a voragem da lâmina nem mesmo a moenda com que o engenho também se instrumentaliza para imprimir nesse entre-lugar o modo como as hierarquias (re)fundam o dizer “sim” à hereditariedade de sangue e o dizer “não” à subversão daqueles objetos que nasceram para ser, no máximo, crias da casa. Para esses, são legados os objetos feitos para serem usados para disciplinar objetos, como a peia,   tronco e o cipó-de-boi. Carregados da moral não só do senhor de engenho como da própria igreja, esses objetos feitos para servir ao mando, imprimem no universo do engenho o apelo de outra espécie de “não”: aquele que faz até mesmo o piano de Dona Amélia romper o resumo da casa para ir estender-se lá fora no lombo do moleque Domingos que havia sido capturado pelo Capitão Tomás:

 

[...] A tarde morria no Santa Fé tristonho. A valsa encheu a casa-grande, saiu de porta afora, foi estender-se pelo canavial verde, foi acalentar a senzala oca, com os moleques nus pelo barro duro, foi abafar os gritos de Domingos na mesa do carro, de corpo nu sangrando com o couro cru que lhe abria feridas no lombo. O piano de Amélia amolecia o coração do velho. De repente ele levantou-se, chegou na porta e gritou:

– Pára, Leopoldo (REGO, 1997, p. 129-130).

 

D. Amélia, apesar de tomar-se toda de um certo lirismo quando o piano tomava conta não só de si como de todos que ouviam, ao se referir às coisas do engenho, colocava o negro na mesma ordem que eram tratados os outros objetos da fazenda, como sementes,  dinheiro, etc:

 

 

O diabo era a vida descansada do genro, aquele paradeiro, aquela distância da terra. Tinha terra gorda para trabalhar, dinheiro, negros, sementes, e ficava dentro de casa, naquela leseira, naquela preguiça sem fim (REGO, 1997, p. 134-135).  

 

 

Para esse objeto, o negro, outros instrumentos são necessários de modo a deixá-lo pronto para a ordem mecânica do “faça”: o chicote, o tronco, a peia. Assim, na engrenagem do engenho, objeto deve concertar objeto, objeto deve lapidar objeto, objeto deve arrumar objeto; enfim, objeto deve torturar objeto, desses que deixam marcas visíveis/indizíveis tanto no solo da pele como na do engenho.

 

 

O delírio de si mesmo: espelho de Mestre Zé Amaro

 

 

Espelho, simulacro de mim no Outro: nele está o mesmo desenho da boca, o mesmo olhar longe feito para denunciar a angústia de ser aquilo que não é: “Não sou lobisomem” – dizia Zé Amaro. Diante do espelho, como a dizer a si mesmo que o que está do outro lado não é matéria de carne, mas de um homem que se recusa a ser objeto de outro, que se recusa a ser camumbembe, que chora pela filha (Marta) longe e pela mulher (Sinhá) que o abandonou para não abandonar a si mesmo; que sente desejo de andar através da noite feito rumo sem fim:

 

Lobisomem. Levantou-se o mestre e foi procurar aquele espelho que ele tinha guardado na mala. Mirou-se, e a cara gorda, inchada, os olhos amarelos, a barba branca deram-lhe a sensação de pena de si mesmo. Estava no fim, a morte esperava por ele (REGO, 1997, p.187).

 

O que procura Zé Amaro diante do espelho? O que nele se governa a ponto de roubar-se para outro tempo lá onde se esconde o reduto da morte? Mesmo com José Passarinho fazendo lhe companhia, sentia-se só. A morte era uma distância próxima: estava bem diante desse outro lado feito de matéria de vidro legado principalmente da vaidade da vida.

Zé Amaro estava só, sem medida de rumo para incorporar pelo menos na hóstia da boca um verbo mais alegre. Marta foi para recife, Sinhá lhe abandonou, o Capitão Lula de Holanda lhe pedira a casa já que morava no engenho como agregado. Que mais lhe reservará os acontecimentos? Era preciso ir embora, mas para onde? Que essência buscar de não sei onde, de que matéria ou de que realidade transcendente que possa ofertar a Zé Amaro uma verdade mais lúcida. Por que não trazer trazer para o corpo deste texto o poema de Carlos Drummond (1902-1987). E agora, Mestre Zé Amaro?

 

Está sem mulher,/ esta sem carinho,/ esta sem discurso/ já não pode beber,/ já não pode fumar,/ cuspir já não pode,/ a noite esfriou,/o dia não veio,/ o bonde não veio,/ o riso não veio,/ não veio a utopia/ e tudo acabou,/ e tudo fugiu/ e tudo mofou/ e agora, José? (Drummond, 1987, p. 154)

 

 

As coisas de Zé Amaro têm agora outros silêncios, respondem a outros sentidos. Enquanto seu martelo agora repousa feito um silêncio absurdo na memória das paredes da casa que ainda guardam a loucura de Marta, a falta de Marta e de Sinhá, a faca foi inaugurar seu outro sentido quando os sentidos para Mestre Zé Amaro respondem a linguagem fugidia dos que buscam do outro lado, não do espelho, mas da morte a solidão necessária para compor-se de outra roupagem: desejo de ser-por-si-mesmo e não extensão de terras de engenho. Assim, longe de se denunciar como algo nada além do que simulacro, o espelho lhe mostrava coesamente o que em Zé Amaro se procurava. Dotado da única liberdade possível ao alcance de si, Zé Amaro se suicida. A morte era seu único devir.

 

 

Bibliografia

 

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