SOBRE O AUTOR E O ROMANCE FOGO MORTO

Natália C. M. Sganzella e Sara Tatiany Curcio

José Lins do Rego Cavalcanti nasceu em 03 de junho de 1901, no Engenho Corredor, no município de Pilar, no agreste Paraibano. Formou-se em Direito pela Faculdade do Recife, mas sobreviveu como jornalista, passando parte da sua vida no Rio de Janeiro. Faleceu em 1957.

 

Publicado em 1943, Fogo Morto é o décimo romance do autor, considerado o mais fecundo escritor do chamado regionalismo nordestino dos anos 30. A obra encerra o ciclo da cana de açúcar, tal como ele mesmo designara, seguindo Menino de Engenho (1932), Doidinho (1933) e Bangüê (1934). De feição realista, o romance procura transpor a superfície das coisas na intenção de revelar o processo de mudanças sociais por que passa o Nordeste brasileiro num período que vai desde o Segundo Reinado, incluindo a Revolução Praieira e a abolição, até as primeiras décadas do século XX. A crise do sistema açucareiro, antes baseado na mão de obra escrava, compõe o pano de fundo de Fogo Morto. Ao declínio econômico segue o desajuste da vida social, das relações e das subjetividades. O "fogo morto", expressão com que, no Nordeste, designam-se os engenhos inativos, parece tomar conta de todos os aspectos da vida e o sentimento de decadência perpassa cada página. Para alguns críticos, o autor produziria, neste romance, um detalhado levantamento da vida social e psicológica dos engenhos da Paraíba e, portanto, Fogo Morto além do alto valor estético traria também um interessante valor documental.

 

Como estilo, a obra é caudatária do Movimento Modernista de 1922, pois baseia-se na linguagem cotidiana, nos aspectos da oralidade espontânea. A versão regionalista do modernismo dos anos 30, recebeu muitas sugestões da sociologia de Gilberto Freyre, um dos organizadores do Congresso Regionalista do Recife, que, em 1926, apresentou um amplo projeto de estudo e compreensão da sociedade local e teve em José Lins do Rego o seu mais fiel discípulo.

 

Segundo Moema D'Andrea (1992), o Movimento Regionalista nasce mais especificamente em oposição ao Movimento Modernista que, falando a partir do Sul do país, particularmente de São Paulo, punha em pauta as utopias modernizadoras contrariando a forma da cultura brasileira de até então, considerada ultrapassada e não mais representativas de um novo tempo. Tratava-se de colocar o país em dia com o pensamento europeu. Para D'Andrea, o nordeste, perdedor na economia, tentava recuperar-se culturalmente diante do restante do país, fazendo vigorar a idéia de que tinha havido uma grande civilização brasileira que ora se perdia no "cosmopolitismo" sulista mais em dia com o estrangeiro que com as "coisas nacionais". A própria sociologia de Gilberto Freyre seria representativa desta idéia e em Fogo Morto há alguma coisa deste lamento pela perda da "civilização canavieira". Como diz Antonio Candido (1992), neste romance, os "personagens são sempre indivíduos colocados numa linha perigosa, em equilíbrio instável entre o que foram e o que não serão mais, angustiados por essa condição de desequilíbrio que cria tensões dramáticas, ambientes densamente carregados de tragédia, atmosferas opressivas, em que o irremediável anda solto" (CANDIDO apud HAFEZ, 1997, p. 21). "Os seus heróis são de decadência e de transição, tipos desorganizados pelo choque entre um passado e um presente divorciado do futuro". (CANDIDO, 1992, p. 61). Perpassando a narrativa, dirá Candido, está o deus ex machina na figura do senhor do engenho Santa Rosa, aquele que domina a zona em termos coronelistas, da ordem política à ordem privada, "não pagando imposto com a tranqüilidade de quem desfruta um privilégio. Alvo de invejas de uns, da oposição e ou admiração aberta de outros. A sua ação se organiza dentro do antigo código patriarcal." (CANDIDO, 1992, p. 62) A violência perpassa cada página em formas diversas e a mais notável é aquela do mando: o cangaceiro Antônio Silvino é o homem pobre rebelado, mas respeita José Paulino, o senhor do Santa Rosa. Antonio Candido diz que "o cangaceiro acata os seus desejos, porque estabeleceu com ele um modus vivendi. O seu prestígio garante a sua autoridade; a sua riqueza garante o seu prestígio." (CANDIDO, 1992, p. 63)

 

Ao lado do Engenho Santa Rosa, há o Santa Fé, do decadente Coronel Luiz César de Holanda Chacon. Este engenho já fora bastante próspero no tempo em que era gerido pelo sogro do atual dono, o velho Capitão Tomás Cabral de Melo, mas agora vivia sua lenta agonia que só terminará com o fogo apagado das caldeiras. Lula de Holanda sofre da "doença de prestígio", segundo observa o crítico. Não suporta a existência dos parentes ricos e, "não podendo ser o primeiro, se retrai amuado. Vai à missa do Pilar de trole, vestido de preto; se ajoelha em almofada de seda, com a mulher e a filha solteirona ao lado, cheias de jóias, e nem olha para a canalha. Os camumbembes querem menosprezá-los ; não reconhecem a sua estirpe e a sua educação. O primo Zé Paulino quer usar-lhe o nome limpo e nobre para a sua política. O velho Lula ignora a existência dos primeiros e se machuca com a riqueza do segundo. Seu Lula se sente covarde". (CANDIDO, 1992, p. 62-63).

 

Nas dependências deste sistema moribundo vive o homem pobre e livre, sem nada de seu e por isso msmo dependente, como dirá Walnice Galvão em As formas do falso (1986), vive o "camumbembe" José Amaro morador de favor das terras de Coronel Lula de Holanda. O mestre seleiro e filho de seleiro. Seu pai viera de Goiana depois de matar um homem e o mestre seguiu-lhe a profissão. Mas, diz sempre que o pai foi seleiro de cidade, que fizera sela para o Imperador. Mestre Zé Amaro é um pobre artesão de beira de estrada, dependente do senhor que lhe expulsa daquelas terras onde vive há 30. "Mas é branco e é homem de respeito. Não atura desaforo de gente rica nem de gente pobre. O coronel do Santa Rosa gritou com ele; ele largou do serviço e não faz mais nenhum para aquele engenho". (CANDIDO, 1992, p. 64).

 

Outro pobre e livre é Vitorino Carneiro da Cunha que o crítico chama de "herói louco, como o puro herói tem que ser", uma espécie de Dom Quixote sertanejo lutando pela modernização, pela aplicação das leis universais e contra os privilégios e a lógica inerente ao sistema coronelista. Se pode rir de Capitão Vitorino porque é ele mesmo um dependente do favor do Coronel José Paulino e por isso é tido como louco, trazendo para as páginas do romance a velha tática da desqualificação usadas pelos grandes para desacreditar os críticos públicos. 

 

É de Antono Candido, ainda, a leitura de que ao falar de Fogo Morto, é necessário falar ds seus personages: 

 

 

"O que torna esse romance ímpar entre os publicados em 1943 - alguns dos quais de primeira ordem - é a qualidade humana dos personagens criados. Fogo Morto é por excelência o romance dos grandes personagens (...) Aqui, os problemas se fundem nas pessoas e só têm sentido enquanto elementos do drama que elas vivem. Nada se sobrepõe aos personagens, literariamente falando, os personagens é que se alçam sobre tudo, dominando os problemas e os elementos com sua humanidade" (CANDIDO apud HAFEZ, 1997, p. 26 ).

 

 

Abaixo, seguem algumas críticas que se fizeram ao romance, algumas fundindo e confundindo narrador e autor. Para nossa leitura, entretanto, o narrador sendo ele próprio parte deste universo em decadência, atribui esta perspectiva de fim de mundo ao fim das glórias de uma classe social. Faz, entretanto, uma bela narrativa.

 

 

"A obra de José Lins do Rego é ele mesmo. É profundamente triste. É uma epopéia da tristeza, da tristeza da sua terra e da sua gente, da tristeza do Brasil. Na tremenda saúde física de José Lins do Rego há a consciência desesperada de todas as doenças possíveis e de morte certa. Há na sua obra a consciência de que tudo está condenado a adoecer, a morrer, a apodrecer. Há a certeza da decadência dos seus engenhos e dos seus avós, de toda essa gente que produziu, como último produto, o homem engraçado e triste que lhe erigiu o monumento. É a grande literatura." (CARPEAUX apud HAFEZ, 1997, p.22).

 

 

"José Lins do Rego oferece-nos uma imagem muito nítida do nordeste dos últimos engenhos, evoluindo lentamente entre crises políticas e lutas domésticas, modorrento sob o sol das secas. Certas situações econômico-sociais se esclarecem, não raro, à luz de uma frase jogada sem demagogia, numa afirmação irrefutável de tragédia simples e terrível: 'No mês de junho morria muito menino', e logo vemos a imensa falta de recursos da região, a força das superstições e de preconceitos, a carência de qualquer política sanitária, a indiferença criminosa dos governos pelo sertão dos coronéis eleitoreiros e do cangaço." (MILLIET apud HAFEZ, 1997, p. 27)

 

"A região canavieira da Paraíba e de Pernambuco em período de transição do engenho para a usina encontrou no 'ciclo da cana-de-açúcar' de José Lins do Rego a sua mais alta expressão literária. Descendente de senhores de engenho, o romancista soube fundir, numa linguagem de forte e poética oralidade, as recordações da infância e da adolescência com o registro intenso da vida nordestina colhida por dentro, através dos processos mentais dos homens e mulheres que representam a gama étnica e social da região (...) à força de carregar para o romance o fluxo da memória, José Lins do Rego aprofundou a tensão eu/realidade, apenas latente nas suas primeiras experiências. E o ponto alto da conquista foi essa obra-prima que é Fogo Morto, fecho e superação do ciclo da cana-de-açúcar." (BOSI apud HAFEZ, 1997, p. 25).

 

 

Referências Bibliográficas

 

D'Andrea, Moema S. A tradição (re)descoberta - Gilberto Freyre e a literatura regionalista. Campinas: Editora da Unicamp, 1992

GALVÃO, Walnice N., As formas do falso, 2a edição, São Paulo: Perspectivas, 1986

HAFEZ, Rogério, Fogo Morto de José Lins do Rego, Análise e exercícios, Objetivo: Os livros da Fuvest. São Paulo: Editora Sol, 1997.

MELLO E SOUZA, Antonio Candido de. "Um romancista da decadência" in Brigada Ligeira e outros escritos. São Paulo: Editora da Unesp, 1992.

PASSONI, Célia A . N., "Estudos das Obras, resumo, análise de textos, exercícios. Fuvest, Literatura. São Paulo: Editora Núcleo, 1998.

 

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