A narrativa dos sobreviventes: movimento, miséria e história em Vidas Secas

Robson dos Santos[1]

(...) marcharemos com nosso amargor. E algum dia os exércitos da amargura irão pelo mesmo caminho. E eles todos caminharão juntos, e haverá então um terror de morte. - John Steinbeck, As Vinhas da Ira

 

O romance Vidas Secas, de Graciliano Ramos tem o privilégio (ou a desvantagem) de já ter sido demasiadamente analisado, criticado, celebrado, relembrado, etc., isto é, ganhou uma posição na história da literatura brasileira com poucos equivalentes. A situação canônica do livro pode representar, paradoxalmente, uma assombrosa barreira à sua leitura. Afinal, nada parece haver de novo para ser expresso sobre ele. Por outro lado, uma releitura acaba sempre por fornecer outra perspectiva: um detalhe, uma nuance, uma possibilidade pode surgir. Nesse curto artigo buscamos tentar compreender a maneira pela qual a idéia de viagem, da necessidade de fugir, do exílio surge em Vidas Secas, buscando vislumbrá-lo também sob a idéia de uma literatura de testemunho, que almeja exprimir uma situação limite. Como destaca Márcio Seligmann-Silva[2], a literatura de testemunho implica também no sentido de “sobreviver”, de ter-se passado por um evento-limite, radical, passagem essa que foi também “atravessar a morte”. Tal tema não surge apenas em obras escritas pelos sobreviventes de alguma tragédia, mas há também um teor testemunhal da literatura de um modo geral, que se torna mais explícito nas obras nascidas de ou que têm por tema eventos-limite. Esta me parece ser a situação de Vidas Secas.

 

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Vidas Secas é publicado em 1938. No ano seguinte inicia-se aquilo que talvez constitua a principal catástrofe já registrada pela história: a Segunda Guerra mundial. O absurdo do conflito mundial revela-se no holocausto, no extermínio indiscriminado de inimigos construídos pelo nazismo e na utilização das mais avançadas técnicas de assassinato em massa. Instala-se a perseguição generalizada, que gera a fuga, o movimento forçado das vítimas. Ao lembrar tal período para adentrarmos em Vidas Secas não queremos estabelecer nenhum equivalente ou qualquer forma de comparação entre tragédias, essas não se comparam. Se Vidas Secas é o romance sobre indivíduos que são expulsos de sua terra pela miséria e tornam-se exilados dentro de seu próprio território, a guerra, o holocausto e a diáspora são incomparáveis na tarefa de gerar exilados dentro de seus próprios países. Em Vidas Secas a miséria cumpre tal papel.

A história de Fabiano e de sua família – ou poderíamos dizer de Baleia e sua família – é a narrativa de uma viagem sem um roteiro traçado, mas ininterrupta. O início do livro e seu final relatam o drama da obrigação de migrar infinitamente, de caminhar para qualquer destino que aparente ser menos miserável que a situação em que se encontram. “Mudança” e “Fuga”, respectivamente, o primeiro e o último capítulo do livro. Ambos nomeiam situações de movimento, tentativas de escapar de algum perseguidor, seja esse a destruição ou a fome. “Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas”. Isso no início. No último capítulo o movimento é retomado e a diáspora causada pela seca se refaz: “mas quando a fazenda se despovoou, [Fabiano] viu que tudo estava perdido, combinou a viagem com a mulher, matou o bezerro morrinhento que possuíam, salgou a carne, largou-se com a família, sem se despedir do amo. Não poderiam nunca liquidar aquela dívida exagerada. Só lhe restava jogar-se ao mundo, como negro fugido”.

A comparação feita por Graciliano entre a situação da família de Fabiano e a de escravos que tentavam fugir de seus proprietários nos faz recordar outra grande diáspora: a dos negros que eram capturados em diversas regiões da África e conduzidos brutalmente às regiões do Novo Mundo.

A viagem surge aqui como uma forma de violência que tinge as rotas do Atlântico com as tonalidades do absurdo e da dor. A família de Fabiano caminha rumo a algo que desconhece. Os escravos capturados navegavam cegos ao ritmo do oceano. Ambos moviam-se sob o signo da incerteza.

O relato de Vidas Secas não é a história dos navios negreiros e seus porões obscuros.; não é sobre o horror do holocausto ou sobre a diáspora judaica, mas compartilha com tais tragédias e principalmente com os indivíduos que a vivenciaram a incerteza daqueles que são obrigados a abandonar seus países, suas aldeias, suas comunidades, seus amigos, familiares, suas crenças e amores para escaparem da morte ou serem conduzidos a ela.

O primeiro capítulo de Vidas Secas caracteriza-se pelo movimento extremamente lento dos viventes que atravessam o sertão, numa metáfora quase bíblica, em busca de algum lugar em que a miséria seja menos cruel, um lugar em que os animais de estimação não precisem tornarem-se alimento, tal como o papagaio que é devorado no início do livro.

A fazenda que encontram no caminho interrompe a jornada, mas não significa o fim da miséria. Talvez seja apenas o anúncio da vida que já tentou existir ali e que insiste em deixar seus vestígios como que querendo alertar sobre a impossibilidade de viver, ao menos naquele local. “Estavam no pátio de uma fazenda sem vida. O curral deserto, a casa do vaqueiro fechada, tudo anunciava abandono. Certamente o gado se finara e os moradores tinham fugido”.

A decisão de permanecer na fazenda resulta apenas da impossibilidade de optar por outro destino. Isso, contudo, devolve ao vaqueiro certo otimismo para com a existência e o futuro da família. “ Eram todos felizes. Sinha Vitória vestiria uma saia larga de ramagens. A cara murcha de sinha Vitória remoçaria, as nádegas bambas de sinha Vitória engrossariam, a roupa encarnada de sinha Vitória provocaria a inveja dos outros (...) Uma ressurreição. As cores da saúde voltavam à cara triste de sinha Vitória. Os meninos se espojariam na terra fofa do chiqueiro das cabras – chocalhos tilintariam pelos arredores. A catinga ficaria verde”.  

A viagem que é temporariamente interrompida reativa a esperança da família e a libido de Fabiano. A seca tosta os corpos, sufoca suas feições eróticas. Os toques, quando ocorrem, são os significantes da violência. Não há afeto, nem palavras reconfortantes, ou sequer palavras. Os gestos em conjunto com os murmúrios compõe a linguagem de Vidas Secas. A parada na fazenda reativa a necessidade de desejar, seja os contornos de sinha Vitória, seja as brincadeiras singelas das crianças.

A viagem que ocorre em Vidas Secas tem como panorama a terra esturricada pela ausência de chuva. Graciliano ao dispor seus personagens em tal ambiente intenta denunciar a miséria nordestina e brasileira. No entanto, busca expor uma contradição inerente ao processo histórico do Brasil. Os anos 30 comportam e sintetizam muitas das perenes contradições do país. A superação do atraso nacional fornecia as diretrizes ao Estado autoritário de Vargas. A busca pela modernização exigia a eliminação daquilo que significava o velho. A burguesia urbana e industrial do Sul-Sudeste olhava com desânimo para os remanescentes ainda vigorosos da oligarquia rural Nordestina. Tal contradição sustentava um intenso debate entre as mais variadas posições intelectuais presentes no cenário cultural e político. A necessidade que orientava as discussões, independente do lado em confronto, era a superação do tal atraso nacional e a inserção do país na modernização capitalista. Isso exigia a elaboração de um “projeto de nação”, um corpo de sugestões que pudesse orientar o desenvolvimento do país. Nesse universo marcado pelo confronto político, as disputas ideológicas sofrem um acirramento, principalmente durante a década de trinta: integralistas e comunistas digladiam-se no campo intelectual, enquanto isso Getulio Vargas gesta uma Estado autoritário que identificava nos confrontos ideológicos do período uma ameaça a ordem: eis que surge o Estado Novo. A civilização urbana e moderna era a solução que seduzia a maioria dos políticos e intelectuais. Exagerando os limites do bom senso, poderíamos indagar em que medida Vidas Secas representa uma rejeição à harmonia que almejava o Estado Novo. Ao que me parece o livro ilustra aquilo que a nova situação recusa e com isso explicita a contradição com cores quentes. A modernização capitalista é restrita e excludente, isso é óbvio. Menos clara é a maneira pela qual o desenvolvimento seria efetivado e suas benesses distribuídas. Vidas Secas parece sugerir que elas não o seriam.

O parêntese aberto é muito longo, mas não de todo inútil. Longe dos objetivos deste pequeno texto reduzir Vidas Secas a algum panfleto político. Porém, o movimento imposto a Fabiano não se esgota no nível da ficção. Basta recordarmos as massas de pessoas do Nordeste e de outras regiões do país, que foram e continuam sendo obrigadas a abandonarem seus lares em busca de melhores condições sociais. Busca raramente bem sucedida. Seja em direção às metrópoles do Sudeste ou para qualquer local que forneça a ilusão de uma existência menos restrita. Essa é a mesma esperança que mobiliza Fabiano e a família a abandonarem a fazenda: “E andavam para o sul, metidos naquele sonho. Uma cidade grande, cheia de pessoas fortes. Os meninos em escolas, aprendendo coisas difíceis e necessárias. Eles dois velhinhos, acabando-se como uns cachorros, inúteis, acabando-se como Baleia. Que iriam fazer? Retardaram-se, temerosos. Chegariam a uma terra desconhecida e civilizada, ficariam presos nela. E o sertão continuaria a mandar gente para lá. O sertão mandaria para a cidade homens fortes, brutos, como Fabiano, sinha Vitória e os dois meninos”.

 A miséria em Vidas Secas impõe o movimento, a mudança, fornece uma fluidez e uma instabilidade às vidas, pois obriga a fuga permanente. Essa miséria, contudo, encarcera, limita e restringe a existência, tanto sugerindo a fome como um companheiro eterno, quanto sugando as forças necessárias ao movimento. Em Vidas Secas a existência parece sempre encontrar-se numa situação limite. Narrar esta é o projeto de Graciliano, mesmo que o absurdo raramente possa ser narrado. Aqueles que suportaram situações limite dificilmente encontram uma forma de relatar sua experiência de maneira completa. Primo Levi, em “É isto um homem?”, a narrativa de sua experiência como prisioneiro de um campo de concentração, afirma em certa altura de sua obra que as palavras das quais as diversas línguas dispõe são incapazes de fornecerem os recursos necessários para traduzir o absurdo de um campo de concentração ou de qualquer outra experiência com a dor extrema, o horror, enfim, situações-limite. Não é gratuita a escassez de palavras que Graciliano impôs em sua construção. Os membros da família de sinha Vitória não se comunicam verbalmente, afinal não dominam esse recurso. Mas também Graciliano se recusa a preencher seu texto com excessos, pois esses seriam inúteis e soariam artificiais.

A “Mudança” e a “Fuga” comprimem o relato da tragédia narrada por Graciliano. A viagem interrompida é retomada e a miséria volta a cumprir seu papel. O absurdo continua obscuro e pouco esclarecido à espera das palavras que irão lhe destroçar a lógica e desnudar seus mecanismos. 

  A viagem enfrentada por Fabiano não fornece qualquer tipo de recordação paradisíaca de alguma imagem deslumbrante, de algum novo amigo, ou qualquer outra referência que poderia fazer com que ele olhasse com saudosismo o chão deixado para trás. O saldo de sua jornada é a degustação de um membro da família e a morte de outro.

Diáspora, navios negreiros, retirantes, imigrantes, todos organizam-se e definem-se a partir da locomoção obrigatória, do movimento forçado, da expulsão. Para atualizarmos os termos, poderíamos pensar na mão-de-obra dos países subdesenvolvidos que arriscam a vida para transpor as fronteiras extremamente vigiadas do mundo globalizado e “ganhar a vida” nos países desenvolvidos. Retirantes modernos ou pós-modernos perseguem expectativas similares e enfrentam pavores que os mantém sob a instabilidade da “Mudança” e da “Fuga”.

 

[1] Mestrando em Ciências Sociais no IFCH/UNICAMP
[2] SELINGMANN-SILVA, Márcio (org.). História, Memória, Literatura – O testemunho na Era das Catástrofes. Ed. Unicamp. Campinas, 2003.

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