O
REINO DESTE MUNDO
A história do ponto de vista dos oprimidos
Silvana
Benevenuto
No
Reino dos Céus não há grandeza a conquistar, pois lá toda a
hierarquia já está estabelecida, a incógnita solucionada, o viver sem
fim, a impossibilidade do sacrifício, do repouso, do deleite. Por isso,
esmagado pelos sofrimentos e pelas Tarefas, belo na sua miséria, capaz
de amar em meio às calamidades, o homem poderá encontrar sua grandeza,
sua máxima medida, no Reino deste Mundo. (Alejo
Carpentier).
I. Apresentação
Este
artigo apresenta o romance histórico O Reino deste mundo,
de Alejo Carpentier, escritor cubano, cuja obra inaugura a tendência da
literatura latino-americana em resgatar a história nativa dos povos
americanos, em contraposição a história escrita pelo ocidente moderno
europeu, que tratou de promover o esquecimento de nossas verdadeiras
origens. É com essa obra também, que surge pela primeira vez o termo
“Realidade Maravilhosa”, assim chamado por Carpentier, ao descrever
as “maravilhas” tão particulares às Américas e impossíveis de
serem descritas tão ricamente pela Europa. Nas palavras de Carpentier:
“(...) a cada passo [dado nas Américas] encontrava a Realidade
Maravilhosa (...) Pensava que essa presença (...) não era privilégio
único do Haiti, senão um patrimônio de toda América.” (CARPENTIER.
Prefácio. O Reino deste mundo).
II.
Sobre o autor e suas obras
Alejo
Carpentier nasceu em Havana (capital de Cuba), em 1904. Foi filho de pai
francês e mãe russa, um homem de formação européia, mas que abraçou
a Cuba nativa, colocando-se a serviço do novo mundo.
Carpentier
estudou arquitetura, foi assistente teatral no Haiti e era músico de
formação. Escreveu um livro importante sobre música cubana,
proporcionando aos europeus a arte original de cantores como Estebán
Caturla – esse foi o primeiro livro latino-americano de Carpentier.
Viveu em Paris na companhia de importantes pintores como Aragon e
Picasso e, sobretudo, conviveu com os surrealistas, a cuja maneira
chegara a escrever poesias e contos. Contudo, renegou seu passado de
europeu requintado e voltou à Cuba, onde o surpreendeu a crise.
Começou
a escrever poesia negra. Participou de movimentos políticos
esquerdistas contra a ditadura de Gerardo Machado, anterior ao regime de
Fidel Castro. Foi preso. Começou a escrever o romance social Ecue-Yamba-O,
terminado em Madri, onde Carpentier freqüentava
o círculo de García Lorca. Outra influência importante foi seu
companheiro de quarto Georg Lukács.
Passou
anos de exílio em Caracas, voltou para Cuba depois da vitória de Fidel
Castro. Fez importantes viagens pelo México e Haiti, onde se interessou
pela revolta dos escravos do século XVIII. Com a vitória de Castro,
Carpentier aderiu a revolução e ocupou cargos de destaque até virar
uma figura ornamental do governo cubano. Morreu em Paris como ministro
conselheiro para assuntos culturais da embaixada, em 1980.
Além
de O Reino deste Mundo, outras obras do autor foram Os Passos Perdidos
(1953), um diário fictício de um músico cubano a serviço dos EUA,
para colecionar musicais folclóricos da região do Amazonas; Guerra
do tempo (1958); O Século das
Luzes (1962), entre outras.
Carpentier
com sua experiência revolucionária reconheceu que as idéias de
libertação chegaram da Europa, por isso considerou necessário estudar
a Revolução Francesa e seu impacto sobre as populações escravizadas
do Caribe. Descreveu esse acontecimento em romances históricos, como
a obra que trataremos O Reino deste Mundo, escrito
em 1949, narrando a história de
uma ditadura libertadora dos negros do Haiti.
Nessa
obra, o autor observa os aspectos da desoladora história haitiana,
elevando-se à voz de consciência social. Trata dos “sem história”,
dos esquecidos, como protagonistas dos principais acontecimentos históricos
- como Ti Noel, Mackandal, Bouckman, o jamaicano, entre outros. Narra a
história do ponto de vista dos oprimidos e não dos vencedores,
opressores.
III.
O romance histórico da América Latina
Na
Europa do século XIX surge o romance histórico que usava o passado
como forma de legitimar o discurso universalizante do Ocidente e visava
consolidar o sentimento nacional. O século XIX foi o momento de construção
da tradição européia, ou seja, da construção de um passado que
fundamentasse as atitudes do presente e lançasse as bases de uma
autoridade das nações do continente europeu. Surge, portanto, num
contexto de profunda fé historicista.
O
século XX abalou o otimismo na história. Contudo, quando isso ocorre,
a imagem da Europa como berço da civilização já estava
suficientemente consolidada nos corações e mentes dos europeus e dos
povos colonizados, ou seja, as grandes narrativas gestadas pela Europa já
haviam consolidado uma identidade extraída de uma tradição
supostamente contínua, mas que era forjada.
O
romance histórico brasileiro do século XIX reflete esse impasse. Segue
a literatura de fundação da nacionalidade, procurando amenizar os
traumas da conquista ibérica e criando imagens que nos aproximassem do
modelo de civilização européia, trabalhando, desse modo, mais com o
esquecimento do que com a memória histórica para nos dar um perfil
mais homogêneo e esconder nossa diversidade. Exemplo desta perspectiva
é possível notar em obras como Iracema
e O Guarani, de José de Alencar.
Ortiz observa que,
a
construção da memória nacional se realiza através do esquecimento.
Ela é o resultado de uma amnésia seletiva. Esquecer significa
confirmar determinadas lembranças, apagando os rastros de outras, mais
incômodas e menos consensuais. (ORTIZ, apud
Figueiredo, http://members.tripod.com/~lfilipe/Vera.html)
O
romance histórico surge somente a partir do século XX, sobretudo, na
América Hispânica, como uma literatura capaz de rever a história
contada pelo colonizador, reinterpretar o passado e construir uma nova
visão da história, mais compatível com a realidade latino-americana.
O romance O Reino deste mundo
inaugura essa tendência, inserindo a necessidade da história como
parte do esforço de descolonização, que se realiza contra uma
mentalidade perpetuada pelas elites locais.
O
que move esse novo romance histórico, portanto, é a vontade de
problematizar o discurso racionalista do Ocidente, para contemplar nossa
realidade multifacetada. Essa consciência cria a “literatura de
resistência” - expressão de Edward Said -, forte e revolucionária,
visando mudar a identidade forjada e resgatar nossa história. Um
aspecto importante desta problematização é a ruptura com a
linearidade. A literatura latino-americana, de Alejo Carpentier, Augusto
Roa Bastos, Gabriel Garcia Márquez, Carlos Fuentes e outros, trabalha
com a multitemporalidade:
No
lugar do tempo retilíneo, trabalha com a simultaneidade temporal, o
tempo circular, o tempo mítico ou a mistura de várias concepções de
tempo. Escreve-se uma anti-história eufórica dos vencedores.
Problematiza-se a enunciação com o intuito de relativizar verdades
tidas como universais e absolutas. (FIGUEIREDO, http://members.tripod.com/~lfilipe/Vera.html).
A
contestação da história como desenvolvimento linear e da idéia de
uma história universal poderia ser vista como manifestação da crise
do pensamento moderno (poderia ser acusado de característica pós-moderna),
mas, segundo Vera Foullain Figueiredo, seu surgimento não vem
acompanhado da perda do sentido revolucionário. Ao contrário, cria
outras utopias, transferindo a esperança para aquilo que foge da razão
instrumentalizada e favorece a valorização das culturas periféricas,
como vemos com as inovações da literatura latino americana.
No
Brasil, o modernismo da década de 20 - Macunaíma, por exemplo - representa a crítica à história criada pelo Ocidente,
com propósitos descolonizadores. Contudo, no Brasil esse tipo de
literatura de resistência não é tão forte quanto na América Hispânica.
IV.
Realidade Maravilhosa
No
Prefácio do romance O reino deste mundo, Carpentier
compara o maravilhoso suscitado nas terras do Haiti com a pretensão da
literatura européia em caracterizar o maravilhoso. Diz que o
maravilhoso na pintura ou literatura européia era obtido com truques de
prestidigitação, reunindo objetos sem finalidade alguma, e, assim, a
“força de suscitar o maravilhoso a todo transe, os taumaturgos
tornaram-se burocratas”.
Invocando
através de fórmulas arquissabidas – que, transformaram certas
pinturas num monótono armarinho de relógios derretidos, manequins de
costureira e vagos monumentos fálicos – o maravilhoso resulta apenas
num guarda-chuva, numa lagosta (...) Aprender códigos de memória é
pobreza de imaginação. E hoje existem códigos para o fantástico.
(CARPENTIER, Prefácio).
Contudo
Carpentier diz que “antes de tudo, para suscitar o maravilhoso é
necessário ter fé. Aqueles que não acreditam em santos não se podem
curar com milagres de santos... ” (CARPENTIER. Prefácio).
Eis
a razão por que o maravilhoso invocado sem fé, como o fizeram os
surrealistas durante tantos anos – nunca foi senão uma artimanha
literária, tão aborrecida, ao prolongar-se demasiadamente, quanto
certa literatura onírica ‘arranjada’ e certos elogios à loucura tão
comuns hoje em dia. (CARPENTIER, Prefácio).
Na
literatura européia existiu um herói (no conto sexto do Maldoror) que,
perseguido pela polícia, escapa de um “exército de agentes e espiões”
adotando a aparência de diversos animais e fazendo uso de seus poderes
de transportar-se para Pequim, Madri ou São Peterburgo. Na América,
que nunca nada parecido foi escrito, existiu um Mackandal, dotado desses
mesmos poderes pela fé de seus contemporâneos.
O
autor narra o romance histórico por “uma sucessão de fatos
extraordinários, ocorridos na ilha de São Domingos, (...) deixando-se
que o maravilhoso emane livremente de uma realidade estritamente seguida
em todos os seus detalhes”. O livro respeita a verdade histórica dos
fatos, dos nomes dos personagens – incluindo novos. E nessa ilha
“tudo é maravilhoso, nessa história impossível de situar-se na
Europa, e que, todavia, é tão real como qualquer feito exemplar
daqueles consignados, para edificação pedagógica, nos manuais
escolares. Mas o que é a História da América senão toda uma crônica
da Realidade Maravilhosa?”. (CARPENTIER, prefácio).
V.
Contexto histórico
O
açúcar produzido nas américas era o produto agrícola mais importante
para o comércio da Europa. Os escravos eram trazidos da África para
proporcionar mão-de-obra numerosa e gratuita. Da plantação colonial
subordinada às necessidades estrangeiras e financiada do exterior provêm
o latifúndio de nossos dias. Esta é uma das causas que estrangulam o
desenvolvimento econômico da América Latina e um dos principais
fatores da marginalização e da pobreza das massas latino-americanas.
Na
segunda metade do século XVIII, a maior produção de açúcar brotava
do solo do Haiti, uma colônia francesa que na época se chamava São
Domingos. Essa produção empenhava meio milhão de escravos, a maioria
africanos. Apesar disso, o país foi o primeiro a conquistar a Independência,
em 1804. Mesmo assim, o Haiti não teve uma trajetória progressiva, ao
contrário, tornou-se o país mais pobre do continente.
A
ilha de São Domingos se dividia entre o domínio francês e o espanhol.
A ilha fora “descoberta” por Colombo na primeira viagem à América.
Os nativos foram completamente exterminados no processo de colonização
européia.
Os
escravos negros eram dominados por trinta mil brancos. Além de negros e
brancos havia os mulatos que já eram livres, mas que também eram
submetidos às agressões dos brancos escravocratas. Apesar disso,
segundo James (2000), alguns mulatos pertenciam a uma pequena casta
privilegiada (eram cozinheiros, criados, serventes, arrumadeiras,
enfermeiras, acompanhantes femininas, etc) estes conseguiram aproveitar
as oportunidades e alguns se alfabetizaram e enriqueceram, como Henri
Christophe, Toussaint L’Ouverture e Dessalines.
Em
Paris, após a Revolução de 1789, a Convenção proclamou a libertação
dos escravos nas colônias francesas. A notícia espalhou rapidamente em
São Domingos e em 1791, iniciou-se a rebelião dos escravos, que
abandonaram as plantações, destruíram engenhos e agrediram os
brancos, matando vários proprietários. Um desses negros
“privilegiados”, Toussaint L’Ouverture, que fora alfabetizado, leu
duas grandes obras que o influenciaram a revolução, uma de Abade
Raynal – que descrevia a situação realista das colônias européias
do Caribe e exaltava a necessidade de um líder que chefiasse os
escravos na revolta – e a outra de Júlio César. Dotado de instrução
acima dos outros ex-escravos, Toussaint L’Ouverture conseguiu
facilmente ascendência e liderou um exército de combatentes que
derrotou o exército dos franceses, dos espanhóis e dos ingleses. O
problema foi que Toussaint manteve a colônia de açúcar para que
continuasse a prosperidade econômica e acabou escravizando os negros
com o trabalho compulsório das fazendas.
Antes,
porém, de Toussaint, um escravo chamado Mackandal – a quem o livro de
Carpentier faz referência de maneira brilhante com seu realismo mágico
e mítico – exercia resistência à escravidão e chefiava um
quilombo. Os quilombolas foram formados por negros sem instrução que não
suportavam a escravidão e fugiam para as montanhas e florestas.
Mackandal unia os negros no plano de expulsar os brancos da colônia.
Ainda segundo James, Mackandal “era um orador (...) com a mesma eloqüência
dos oradores europeus (...) diferente apenas na força e no vigor, em
que lhes era superior” (JAMES, 2000, p. 35). Era um maneta, devido a
um acidente, que “tinha uma fortaleza de espírito que sabia preservar
mesmo em meio a mais cruel das torturas” (Ibidem).
Mackandal
dizia prever o futuro e convenceu seus seguidores (no romance de
Carpentier, um deles é o personagem central, Ti Noel) de que era
imortal. O seu grupo saía pelas fazendas para converter mais escravos
para o bando e estimular seus seguidores ao grande plano de destruição
da civilização branca de São Domingos.
Mackandal
tentara acabar com o domínio dos brancos envenenando a água de todas
as casas da província. Um dia embebedou-se e acabou falando demais,
sendo denunciado, capturado e queimado vivo – este episódio é
narrado brilhantemente por Carpentier, da forma como o veneno se
espalhou pelas casas, das metamorfoses de Mackandal escondendo-se dos
brancos e de sua morte.
Em
1801, Napoleão Bonaparte envia a São Domingos uma expedição de 25
mil soldados sob o comando de Leclerc, esposo de sua irmã, Paulina
Bonaparte, para intervir no levante dos escravos e tentar restabelecer a
escravidão. Mas, o líder Toussaint vai à luta, juntamente com
Dessalines, ex-escravo analfabeto que revelou maestria de chefe militar.
Leclerc aprisionou Toussaint, que acabou morrendo mal alimentado, em
1803. Mas mesmo com o afastamento de Toussaint, Leclerc perdeu o
combate. Seu exército sofria perdas em conseqüência das doenças
tropicais e da febre amarela da qual Leclerc, em 1802, veio a falecer.
Segundo
a narrativa de O reino deste mundo,
cuja perspectiva assume o ponto de vista escravo, a morte de Leclerc
“vitimado pelo vômito negro” é uma vingança do trópico contra
ele. Paulina Bonaparte, sua esposa, desespera-se, descrê na ciência, já
que os médicos não conseguem remédios que curem o mal, e apega-se a
Soliman, o negro massagista com o qual mantêm relações pessoais,
passando a realizar rituais e trabalhos mágicos tentando a cura de
Leclerc. Com sua morte, Paulina desespera-se e retorna à França.
Os
escravos haitianos, tendo alguns líderes como Henri Christophe e
Dessalines, vencem a revolução. Em novembro de 1803, os revolucionários
negros – chamados de jacobinos negros, por defenderem o ideal jacobino
de liberdade e igualdade de todos os homens (enquanto na França a
guilhotina decepava a cabeça dos jacobinos) – divulgam a declaração
da Independência. E em 31 de dezembro de 1803 era lida a Declaração
da Independência e o Estado recebia de batismo o nome indígena Haiti,
que significa montanha.
VI.
O Reino deste mundo
O
Reino deste mundo narra a história da
revolta dos escravos no fim do século XVIII, no Haiti, tendo sob ponto
de vista a perspectiva dos escravos, ou seja, dos vencidos, dos
oprimidos e toda sua história particular de crenças míticas nas
divindades e nas forças sobrenaturais.
Carpentier
faz estilhaçar, de maneira rica, metafórica e irônica, a razão do
Ocidente europeu, dono da verdade e da objetividade dos fatos, narrando
a história privilegiando a verdade dos negros escravos, a verdade do
cotidiano, do senso-comum e não a verdade absoluta e imutável da razão
positivista.
Nesse
sentido, logo no primeiro capítulo do livro, o autor narra uma ida do
senhor Mousieur Lenormand de Mezy, com seu escravo Ti Noel, personagem
central da história, à barbearia, onde o escravo diverte-se com as
cabeças de cera expostas na estante da barbearia, com perucas,
comparando-as com as cabeças de terneiro expostas no açougue
“esfoladas, com um raminho de salsa sobre a língua, que tinham o
mesmo tom da cera (...) Ti Noel se divertia pensando que ao lado das
cabeças de terneiro descoradas, serviam-se, na toalha da mesma mesa,
cabeças de brancos senhores. (CARPENTIER, p. 2).
Ti
Noel que havia sido instruído por Mackandal, o escravo que já
mencionamos no contexto histórico, comparava o Rei da África,
guerreiro e valente, aos reis da França:
Reis
eram reis de verdade, e não esses soberanos cobertos de cabelos
alheios, que jogavam a bola e só sabiam imitar os deuses nos palcos de
seus teatros da corte, exibindo a perna amaricada ao compasso de uma
contradança. (CARPENTIER, p. 4).
Podemos
perceber que a história ao ser narrada sob o ponto de vista do escravo
ganha a liberdade de ironizar e ridicularizar sem medidas aos europeus.
O autor, tomando emprestado o olhar do escravo Ti Noel, chega a comparar
a virilidade de um rei africano a um rei europeu:
Na
África, o rei era guerreiro, caçador, juiz e sacerdote, seu sêmen
precioso engrossava em centenas de ventres uma vigorosa estirpe de heróis
(...) E quanto à virilidade não ia além de gerar um debilóide,
incapaz de abater um veado sem a ajuda de seis batedores. (CARPENTIER,
p. 4).
Segundo
o narrador de O reino deste mundo,
Mackandal, que ficara maneta num acidente, é destinado a cuidar do
gado. Lá ele passa a observar que havia certas plantas que o gado não
comia e planeja o envenenamento dos brancos senhores.
O
maneta Mackandal, ogã do ritual Radá, investido de poderes extraordinários,
porque vários deuses tinham baixado nele, era o Senhor do Veneno (...)
tinha proclamado a cruzada de extermínio, eleito, como ele havia sido,
para acabar com os brancos e criar um grande império de negros livres
em São Domingos. (CARPENTIER, p. 19).
Os
senhores saíam à procura de Mackandal e este, para fugir à captura,
passa a disfarçar-se, metamorfoseando-se em vários insetos, animais e
aves. Quatro anos duraram suas metamorfoses até que retornasse à
vestimenta de homem. Contudo, ele acabou sendo capturado e, na noite de
seu suplício, os senhores reuniram os negros para que assistissem sua
tortura e esta servisse de exemplo a outros negros traidores.
Os
negros sabiam dos poderes de metamorfoses de Mackandal e aguardavam
tranqüilos. Acreditavam que no momento do suplício, Mackandal se
metamorfosearia. E, de fato, quando o fogo começou a subir até o
maneta, Mackandal “esticou-se no ar, voando sobre as cabeças, antes
de mergulhar nas ondas do negro mar de escravos” (CARPENTIER, p. 31).
Um
grande alvoroço se fez e os negros nem viram que dez soldados
capturaram Mackandal e o queimaram vivo. “Mackandal tinha cumprido sua
promessa, permanecendo no reino deste mundo” (idem, p. 31).
Outros
ataques dos europeus são feitos quando, por exemplo, o autor narra o
envolvimento do amo Monsieur L. Mezy com uma má intérprete de papéis
no teatro, Mademoiselle Floridor, que, indo morar na fazenda com o
senhor, vingava-se de seu fracasso artístico chicoteando as negras e,
quando bêbada, declamava os papéis que nunca pode interpretar. Os
negros nada entendiam do que ela dizia e achavam que ela devia ter
cometido terríveis crimes.
Ti
Noel transmitia a seus filhos as narrativas de Mackandal e os negros o
reverenciavam. Em contraste, haviam os senhores e suas imoralidades,
como as do Monsieur Lenormand de Mezy que, bêbado, corria atrás das
mocinhas e da senhora “louca”.
A
guerra também é narrada sob a perspectiva dos nativos, tanto que o
ataque aos brancos é planejado com um ritual a Ogum das armas, em que
um facão é colocado no ventre de um porco e os negros desfilam com os
lábios untados com o sangue do animal. Bouckman, o jamaicano, é quem
planeja o ataque levando aos homens a notícia da Declaração
promulgada na França da libertação dos negros. Armados de paus, os
escravos cercaram as casas dos feitores, “gritando para que morressem
os amos, o governador, o bom Deus e todos os franceses do mundo”
(CARPENTIER, p. 44).
Paulina
Bonaparte e seu esposo Leclerc são mandados a São Domingos para conter
a revolta os escravos. Interessantemente, o narrador relata essa história
ironizando a postura de Paulina, sua paixão pelo trópico e seu
envolvimento com o escravo Solimán. Entretanto, Paulina desespera-se e
teme o trópico quando Leclerc adoece e morre vítima do “vômito
negro” e passa a reverenciar as crenças e ritos mágicos dos negros.
Para
os negros, eles venceram as tropas de Leclerc porque
Os
Grandes Loas agora favoreciam as armas dos negros. Ganhava a batalha
quem tivesse deuses guerreiros para invocar Ogum Badagri guiava a carga
de arma branca contra as últimas trincheiras da Deusa Razão.
(CARPENTIER, p. 64).
E,
assim, os escravos vencem a guerra contra os colonos franceses. “Ti
Noel era agora um homem livre. Vivia numa terra onde a escravidão fora
abolida para sempre”. (Ibidem,
p. 70). Os negros sabiam que o triunfo do líder negro Dessalines
devia-se à intervenção de vários deuses do mundo dos Altos Poderes.
Contudo,
após a vitória dos escravos, os mulatos ambiciosos, como Henri
Christophe, acabaria instalando uma nova escravidão,
Pior
ainda [que a dos franceses], pois era infinitamente mais doloroso
receber uma paulada de um negro como nós, tão beiçudo e encarapilhado,
com o nariz tão achatado como o nosso, tão igual, tão mal-nascido, tão
marcado a ferro, provavelmente como nós. (p. 79).
O
rei Henri Christophe acabou sendo traído por seus padres confessores.
Quisera ignorar a mística africana tentando dar à sua corte um aspecto
europeu, mas acabou tendo seu império incendiado pelas forças do Vodu,
dos tambores radas, tambores congoleses, os tambores dos Grandes Pactos.
“Christophe, o reformador, quisera ignorar o Vodu, formando à
chicotada, uma casta de senhores católicos” (Ibidem,
p. 93). E agora compreendia que os verdadeiros traidores de sua causa
foram justamente os católicos. Christophe acaba se suicidando.
Ti
Noel volta à fazenda do seu amo, porém, agora ele a habita como se
fosse o dono. Certa manhã, porém, aparece por lá os agrimensores,
medidores de terras e dizem que “o chicote agora estava na mão dos
mulatos Republicanos, os novos donos da Planície do Norte”. (p. 112).
Ti
Noel que não suportaria já velho passar por nova escravidão, passou a
metamorfosear-se, como o mandinga Mackandal, em diversos insetos e
animais. Entretanto, quanto mais fugia da escravidão, e a cada animal
que se transformava caía sob novo jugo. Como formiga, por exemplo, fora
obrigado a carregar pesadas cargas “sob a vigilância [das formigas]
cabeçudas que muito lhe recordavam o feitor de Lenormand de Mezy, os
guardas de Christophe e os mulatos de agora. (p. 113).
Chegaram
uns gansos da antiga criação de Sans-Souci e Ti Noel resolveu
metamorforsear-se em ganso, pois o considerava um animal esperto que não
se sujeitaria à submissão. Contudo, também como ganso fora
desprezado: “Deram a entender claramente a Ti Noel que não lhes
bastava ser ganso para que acreditasse que todos os gansos os são
iguais”. (p. 116).
Ti
Noel compreendeu que este repúdio dos gansos era um castigo por sua
covardia, pois, Mackandal disfarçava-se de animal para servir aos
homens e não para abandoná-los. Ti Noel começou a refletir e acabou
notando que o homem
Sofre,
espera e trabalha para pessoas que nunca conhecerá e que, por sua vez,
sofrerão e esperarão e trabalharão por outros que também não serão
felizes, pois o homem deseja sempre uma felicidade muito além da porção
que lhe foi outorgada. (p. 117).
Ti
Noel concluiu que no reino dos céus não há grandeza a conquistar,
pois a incógnita já está solucionada. Mas, no reino deste mundo, o
homem “esmagado pelo sofrimento e pelas tarefas, belo na sua miséria,
capaz de amar em meio às calamidades, poderá encontrar sua grandeza,
sua máxima medida” (p.
117).
Ti
Noel gritou aos senhores, dando ordem a seus súditos que atacassem as
obras insolentes dos mulatos investidos de poder. E naquele instante, um
poderoso vento caiu sobre a Planície do Norte, levando consigo tudo da
antiga fazenda no desmoronamento.
E
desde então ninguém mais soube de Ti Noel (...) salvo talvez aquele
abutre molhado que esperava o Sol com as asas abertas: cruz de penas que
terminou por encolher-se e mergulhar nas profundezas de Bois Caimán.
(p. 118).
VII. A importância da obra e suas contribuições
A importância de se ler esse tipo de literatura está justamente
na resistência que esta exerce frente ao mundo racionalista
instrumentalizado, científico e capitalista.
O romance histórico de resistência
voltou-se contra a visão universalizante da história segundo um
paradigma ocidental, denunciando, desse modo, as falácias desse
discurso tido como científico. E, ao travar uma luta contra o
esquecimento promovido pelo poder e fazer emergir o passado que havia
sido silenciado pelas representações oficiais privilegia a história
que, uma vez resgatada, tem em si um potencial utópico – não se
encaixa, portanto, na chamada narrativa pós-moderna que se insere no
contexto atual de descrença no estatuto científico da história, de
que tudo são versões, apenas.
O
retorno atual de uma literatura que não está direcionada unicamente a
fins comerciais, faz parte do movimento mais amplo de protesto,
acirradas com o modernismo, contra a reificação mercantil da obra de
arte operada no capitalismo.
Bibliografia:
CARPENTIER, Alejo. O
reino deste mundo. Trad.: João Olavo Saldanha. Rio de Janeiro: Ed.
Civilização Brasileira, 1985.
GALEANO, Eduardo. As
veias abertas da América Latina. Trad.: Galeano de Freitas. Rio de
Janeiro> Paz e Terra, 1994.
GORENDER, Jacob. O
épico e o trágico na história do Haiti. In Revista Estudos Avançados
USP. Vol. 18, n. 50.
JAMES, C.L.R. Os
jacobinos negros – Toussaint L’Ouverture e a Revolução de São
Domingos. Trad.: ªT. Filho. São Paulo: Boitempo, 2000.
FIGUEIREDO, V. F. O
romance histórico contemporâneo da América Latina. Site: http://members.tripod.com/~lfilipe/Vera.html
acesso em 10/2004
Graduanda em Ciências
Sociais pela FFC/UNESP – Marília, membro do Grupo de Estudos em
Cinema e Literatura e do PET/CAPES em Ciências Sociais.
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