A cidade e o campo no filme Vidas Secas

Guilherme de Castro Ortega

 

No decorrer do filme Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, notamos o aparecimento da cidade por três vezes, mesmo que idealizada como em um dos casos. Ou seja, a cidade (vila) mostrada no filme aparece duas vezes, enquanto a cidade grande é tida como imaginária, pois não aparece de fato no corpo do filme.

É preciso que destaquemos, no entanto, a não existência direta de conflito entre a vila e o campo, uma vez que ambos se submetem, praticamente, às mesmas regras sociais sob as quais o coronel exerce quase totalmente o poder junto à população tanto sertaneja quanto “urbana”. O que nos faz entender que o coronel “articula” e molda praticamente todas as relações sociais, tal como a época que o filme retrata – o início dos anos de 1940 – quando o Brasil ainda se encontrava apoiado quase que exclusivamente na lógica agrária de poder. Assim, não há uma diferenciação clara e totalmente delimitada entre cidade e campo, ainda que possamos perceber algumas particularidades em ambos.

Neste sentido, a primeira vez que Fabiano vai à cidade é para receber o seu pagamento pelos serviços prestados ao coronel, proprietário da terra. Logo ao chegar na casa deste, o espectador ouve o som de um violino e, entrando na casa com Fabiano, descobre ser a filha do coronel tomando aulas de música. Este fato nos coloca frente à questão de que a filha do coronel, por ser parente direto do detentor das terras, tem acesso aos “bens da alta-cultura” (ainda que ela, supostamente, talvez não tenha nenhum conhecimento de o que possa ser essa alta-cultura); além disso, por essa relação de detenção da propriedade, a filha do coronel é situada numa situação de vida mais humana, menos zoomorfizada, ao contrário de Fabiano e sua família.

Em outra medida, ao sair da casa do patrão, Fabiano tenta vender alguns pedaços de carne de porco para obter mais algum dinheiro que o ajude na sobrevivência. Mas logo é repreendido por um soldado e pelo fiscal municipal, que diz a Fabiano:

 

“– Pra vender tem que pagar imposto pra prefeitura!”

 

Fabiano não entende o imposto que lhe está sendo cobrado. O que faz com que notemos, nesta passagem, a sua não integração – mas não necessariamente uma oposição - de homem pobre rural aos moldes burocratizados que a vida urbana impõe. Esta não integração se dá pelo fato de que Fabiano e sua família estão ali de passagem, como migrantes. As leis, impostos, juros e o governo não fazem parte do cotidiano deste personagem. Assim, podemos perceber uma outra lógica de vida já sendo impressa na vila. A relação dele com o poder é outra, se qualifica nos moldes, como nos mostra Walnice Nogueira Galvão, de um favor feito pelo fazendeiro ao deixá-lo ocupar e trabalhar em suas terras. Nesta condição, os trabalhadores “tornam-se geralmente agregados e moradores, isto é, dependentes do fazendeiro” (GALVÃO, 1986, p. 36-37).

Em sua segunda visita a vila durante o filme, Fabiano, Sinhá Vitória e os dois meninos vão a uma festa. Neste momento, podemos perceber algumas diferenciações e aproximações entre o campo e da vila. A começar, notamos que Fabiano e Sinhá Vitória não conseguem se adaptar às roupas que usam para a ocasião: “A elegância à européia é insuportável sob o sol do sertão, muito embora homens como o prefeito a tolerem, como veremos na festa” (TOLENTINO, 2001, p. 158). O que demonstra que a festa na vila tinha, a princípio, uma diferenciação em relação às roupas do dia a dia usadas no campo.

Num trecho posterior, ainda na festa, após Fabiano ter saído da roda onde participava de um jogo de cartas junto com outros homens, percebemos a segunda aparição do poder instituído, na figura do soldado amarelo, representante da força policial, que envolve Fabiano em uma encrenca. Mais uma vez, Fabiano se vê diante de um poder alheio ao seu ambiente cotidiano. O governo se materializa para ele, coisa que não se encontra no campo. Já na cadeia, onde será preso, Fabiano vê essa autoridade do Estado se materializar na medida em que o policial que o prendeu fala para o delegado o suposto motivo da prisão:

 

“– Desacato à farda e me ofendeu na frente de todo mundo e merece uma lição pra não se meter a besta com as autoridade.”

 “– Tá certo,” Responde o delegado.

 

A vila, porém, não se diferencia tanto do campo. Pois o coronel, ao ver Fabiano preso, com o total respaldo do prefeito, manda que o tirem de lá. Desta forma, novamente vimos que o coronel exerce poder de mando na vila. Este poder é vinculado ao fato de que o coronel é proprietário de terras e isso lhe dá muitos poderes perante a vila e suas instituições (como a polícia e a prefeitura). Isto aproxima e não nos permite uma diferenciação clara entre o campo e a cidade, de modo que o fazendeiro é influente e detêm o poder em ambos os ambientes.

Por fim, a terceira vez em que a cidade aparece no filme, ela não aparece de fato em imagens. Este é o momento em que a família foge novamente da seca em busca de uma vida melhor. Sendo assim, a cidade grande é projetada, principalmente pela fala de Sinhá Vitória, como o lugar que traria felicidade, prosperidade e dignidade à sua família. Ela “intui que permanecerão na última escala social, enquanto dependerem desse vínculo temporário à terra que não lhes pertence” (TOLENTINO, 2001, p. 169).

O filme termina com o deslocamento da família, fugidos da seca, para a grande cidade. Notemos, ainda, que a ida da família para a cidade grande é tratada como uma idealização do progresso. Ou seja, a cidade retratada, mais urbanizada e industrializada, apresentar-lhes-ia outras formas de vida e de relações sociais, diferenciando em muito do sertão e da vila mostrada no filme. 

 

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