FOGO MORTO: VIOLÊNCIA E OPRESSÃO NO SERTÃO CORONELISTA

 

Vinebaldo Aleixo de Souza Filho

  

 

Introdução

 

 

Integrante tardio do ciclo da cana-de-açúcar, Fogo Morto, de José Lins do Rego, é ambientado na Paraíba no final do século XIX e início do século XX. O ciclo apresenta o processo de decadência dos engenhos Zona da Mata nordestina que, progressivamente, perdem seu poder com o surgimento das usinas. Estas últimas passam a comprar dos engenhos a cana não processada, determinando assim o preço pago e os velhos engenhos, na condição de meros fornecedores de matéria-prima, tornam-se engenhos de fogo morto. É nesta condição que se encontra o engenho Santa Fé, tratado no romance, no final do livro.

 

Podemos dizer que neste romance, José Lins do Rego mostra a vida do homem rural, o forte poder patriarcal que perpassa todas as relações sociais do nordeste canavieiro, o coronelismo, a manipulação dos órgãos institucionais, a violência explícita da polícia, dos jagunços e dos cangaceiros. A sua organização em três partes é fundamental para entender o intrincamento desta relações e da violência. 

 

Na primeira parte do romance nos é apresentado a personagem do mestre José Amaro em sua condição ambígua de agregado e sua revolta contra os coronéis locais, contra sua mulher, contra sua filha, contra o negro Floripes, contra o povo que acredita que ele pode virar lobisomem. Submetido ao poder dos coronéis e ao sistema patriarcal, o Mestre José Amaro é angustiado e sente-se impotente para conseguir mudar a situação à sua volta, passando a reproduzir em seu universo familiar a opressão que sofre. E nesta situação em que ora oprime e ora sofre opressão desencadeia-se uma série de fatos que tornam o mestre José Amaro cada vez mais só e amargo. 

 

Nesta primeira parte, pode-se destacar a violência, principalmente implícita, e a opressão que envolve a relação entre o proprietário e o homem pobre do campo, morador de favor. Essa sociabilidade rústica encerra uma ambigüidade, pois o morador de favor não participa do processo produtivo direto e, desta forma, sua dispensabilidade redunda em total subordinação. É esta a situação do velho e doente seleiro Mestre Amaro.

 

Já na segunda parte, denominada O Engenho de seu Lula, o narrador, onisciente, faz uma regressão temporal a 1850, período de fundação do engenho Santa Fé e da sua rápida prosperidade, reevocada como memória no tempo narrado, quando se adivinha a sua decadência.

 

Na parte terceira intitulada, O Capitão Vitorino, o processo de decadência do engenho Santa Fé é visível assim como as próprias relações sociais que redundam em uma violência explícita, seja por parte da força legalizada da polícia, seja pela ação dos jagunços e dos cangaceiros. Estes últimos, apesar de não se subordinarem aos coronéis, mantém com ele estreitos laços de lealdade.

 

O objetivo desse pequeno artigo é focalizar a problemática da violência, que perpassa o tríptico do enredo. Inicialmente, mostraremos como e quando no Brasil engendrou-se a formação de um poder local forte, caracterizado pelo patriarcalismo. Depois, enfatizaremos como a origem social do jagunço, cangaceiro, cabra, etc. decorre desse processo para, enfim, discorrer a partir do enredo da obra, do modo como ocorrem as relações sociais perpassadas pela violência entre as personagens.

 

 

Jagunços e Capangas – uma distinção

 

Cabe indagar inicialmente quem é jagunço, capanga e seus derivados. Rui Facó em seu estudo sobre a origem do cangaço já nos alertava para as necessidades dessa distinção. Segundo ele, pelo que tudo indica, o capanga surgiu primeiro. Para situá-los historicamente faz-se necessário remontar ao período colonial, mais precisamente, ao período de exploração e ocupação do interior do país, em que os colonos, donos de sesmarias, e posteriormente, latifundiários, ao avançarem as ocupações do território, expulsaram indígenas e os negros dos quilombos para formarem suas fazendas. E, para defendê-las, bem como ao gado e a plantação dos ataques indígenas, os proprietários contrataram e armaram dezenas de homens. Contudo, a função destes logo deixou de ser apenas defensiva, pois os proprietários também os utilizaram para atacar as propriedades vizinhas. Esta é a origem do capanga, segundo Rui Facó: “Aí está o capanga e sua sede – a grande propriedade territorial; o seu comando: o chefe local, o coronel fazendeiro ou o dono de garimpos” (FACÓ, 1991, p. 64).

 

Esses braços armados dos fazendeiros desempenhavam diversas funções, desde o trabalho corriqueiro no interior da propriedade até a defesa e a resolução – incluindo ações criminosas – de conflitos do proprietário.

 

Já o jagunço, segundo Facó, seu diferencial é que ele não é um morador de favor e, por conseguinte, não se submete ao trabalho na propriedade rural. Os jagunços atuam coletivamente e desafiam o sistema de poder local.

 

Quanto a origem social, não há distinção entre jagunços e capangas, pois eles são pessoas pobres do campo que participam da mesma forma de sobrevivência. Numa ordem de fatores totalmente adversa, os que se rebelaram formaram os bandos de jagunços ou cangaceiros – esse é o caso do bando que aparece no romance Fogo Morto, o de Antônio Silvino, que de fato existiu no sertão. A outra via possível, seria a subordinação à proteção de um proprietário latifundiário como no caso do pai do Mestre Amaro, que fugira de Goiana após cometer um crime e passara a morar no engenho Santa Fé sob a proteção do velho Tomás. Recordando o passado, o Mestre Amaro relembra a origem da sua condição de agregado:

 

 

Tudo se passava como um relâmpago. Um homem aparecera para comprar uma sela, e conversa vem, e conversa vai, saíra briga. A morte do sujeito de Cariri, homem que metia medo a todo mundo. O seu pai contara com a proteção dos grandes da terra mas quando ficou livre não quisera mais parar naquela cidade. Nunca mais seria o mesmo, deixara tudo pra ser somente um seleiro de beira de estrada, morador de engenho, com aquela fama de assassino nas costas. Fizera aquela casa. Tivera filhos que se foram para outras terras. Só ele ficara para ser aquilo que era agora, homem odiado por todos, fazendo medo aos meninos, assombrando as mulheres, odiado por sua esposa (REGO, 1997, p. 183).

 

 

Mestre Amaro, depois do pai, fora ficando no engenho Santa Fé. Quando o romance começa, ele esta sendo ameaçado de expulsão pelo Coronel Lula, o genro e herdeiro do velho Capitão Tomás, e se submete à proteção do cangaceiro Antônio Silvino, que ordena ao seleiro que permaneça naquelas terras. Portanto, o seleiro nunca fora ou seria livre, pois esteve e estaria sempre submetido a um poder mandatário.

 

O Poder e a Violência – policiais e jagunços

 

 

Em Fogo Morto, há duas visões predominantes da atuação dos jagunços: de um lado, o povo que considera Antônio Silvino uma “espécie de pai dos pobres”; por outro, temos a visão do Capitão Vitorino Carneiro da Cunha, que defende um tipo de conduta que se assemelhe aos ideais de justiça oficial, que não obstante parecem nunca vigorar naquele sertão. Nesta perspectiva, para Vitorino os jagunços são criminosos. No primeiro caso, a crença do povo na justiça dos cangaceiros é evidenciada quando o grupo de Antônio Silvino ataca a cidadezinha de Pilar. Aos primeiros tiros os soldados fogem, os cangaceiros soltam os presos, vão à casa do prefeito Napoleão e, não o encontrando, exigem da sua esposa que lhes entregue a chave do cofre. Como a mulher se recusa a ceder a chave, Antônio Silvino vai para a casa de comércio do chefe do município e dá tudo aos pobres:

 

O povo estava à porta da loja, esperando os acontecimentos. As luzes do sobrado do prefeito enchiam a casa, como em noite de festa. Depois, o capitão Antônio Silvino baixou para casa de comércio, abriu as portas largas, e mandou que todos entrassem. Ia dar tudo que era do comendador aos pobres. Foi uma festa. Peças de fazenda, carretéis de linha, chapéus, mantas de carne, sacos de farinha, latas de querosene, fogos de ar, candeeiros, tudo distribuído como por encanto. Mais para a tarde, o capitão chegou à varanda do sobrado e gritou:

 

 

– Podem encher a barriga. Este ladrão que fugiu, me mandou denunciar ao governo. Agora estou dando um ensino neste cachorro (REGO, 1997, p. 180).

 

 

Essa visão de Antônio Silvino como herói e “pai dos pobres” pode ser contraposta com a violência praticada pela polícia em relação ao povo em geral e, neste sentido, como a força policial se subordina aos chefes locais ela pode ser considerada o “pai dos ricos”, e o governo o terror do povo. Como o narrador falando das impressões de Mestre Amaro:

 

 

O cego Torquato já estava na cadeia do Mogeiro, apanhando como um  boi ladrão. O Tenente Maurício não tinha dó de ninguém. Fora por isso que a notícia do ataque ao Pilar dera ao Mestre José Amaro uma satisfação sem igual. Um grande da vila ficara arrasado com a força do homem que não respeitava a grandeza de ninguém [...]. Chegara uma tropa para castigar o povo que ficara com as mercadorias do comendador. O delegado José Medeiros estava prendendo gente sem parar. O cipó-de-boi ia cantar no lombo do povo. Todos pagariam. A justiça do governo era sempre assim, daquele jeito. Todos pagariam. O capitão tinha força para botar as coisas nos seus lugares (REGO, 1997, p. 183).

 

 

Tratar o jagunço como herói ou como criminoso vulgar trata-se de um reducionismo, uma vez que sua conduta é orientada por uma lógica própria, como afirma Walnice Nogueira Galvão:

 

 

O Jagunço não é um criminoso vulgar. As noções de honra e de uma vingança, bem como o cunho coletivo de sua atuação, está inextricavelmente ligado à figura. O jagunço não é um assassino: ele é soldado numa guerra; o jagunço não mata: ele guerreia; o jagunço não rouba: ele saqueia e pilha (GALVAO, 1986, p. 18).

 

 

Portanto, assim como no patriarcalismo há uma duplicidade de conduta, de um lado, uma face cordial para os amigos e, de outro, uma face autoritária e violenta desta voz mandante que não suporta ser contrariada.

 

Também o comportamento do jagunço deve ser entendido por meio de um código de honra rígido. Quando ocorre uma ação contrária a essa conduta moral, desencadeia os motivos para uma punição violenta. Os jagunços possuem, portanto, como padrão de conduta: a lealdade, o cumprimento da palavra, a coragem, o respeito às mulheres, ao mesmo tempo repudiam a falsidade. Isso explica porque Antônio Silvino ao atacar o Pilar, nada fez a Dona Inês: “Ameaçou a mulher, mandava-lhe passar o couro, e ela, muito calma, só dizia que nada podia fazer” (REGO,1997, p. 180, grifos nossos). Em contraposição: “O delegado José Medeiros havia sido agredido por um dos cabras” (REGO, 1997, p. 181, grifos nossos). E vemos que a justificativa do ataque à casa do prefeito fora a denúncia que o este fizera ao governo: “Podem encher a barriga. Este ladrão que fugiu, me mandou denunciar ao governo. Agora eu estou dando um ensino neste cachorro” (REGO, 1997, p. 180, grifos nossos).

 

Portanto, o jagunço é um soldado numa guerra pela sobrevivência e não um criminoso simplesmente. O capítulo II de Fogo Morto, inicia-se com o Capitão Antônio Silvino mandando avisar que o Mestre Amaro era seu protegido e que ele poderia ficar na propriedade o tempo que quisesse. Não obstante, Lula mantém sua posição, ou seja, o Mestre Amaro deveria sair, apesar de Dona Amélia e a filha Neném pensarem em abandonar a casa grande, pois tinham em mente o ocorrido na casa do prefeito Napoleão:

 

 

Dona Amélia e a filha Neném pensaram em abandonar a casa-grande, em fugir para a capital. Antônio Silvino com raiva de uma criatura fazia o diabo. Não viram ao que sucedera ao prefeito, ao comendador Quinca Napoleão? O que podiam fazer com eles, que eram tão fracos, tão sem ajuda de ninguém? Seu Lula não sairia de seu engenho. Que viessem, podiam tocar fogo em tudo que era seu, mas dali não sairia. Aquele mestre José Amaro que se aprontasse para deixar a propriedade (REGO, 1997, p. 194).

 

 

Quando Antônio Silvino atacara o Santa Fé, dizia estar atrás do ouro enterrado, como afirma para o coronel Lula:

 

 

Vejo que o senhor deixou o homem onde estava! Nele não se bole. Homem que merece minha proteção eu protejo mesmo. Protejo na ponta do punhal, na boca do rifle. Isto, felizmente, o coronel sabe [...]

– Coronel, eu sei que o senhor tem muito dinheiro.

- Como?

- Não é preciso esconder leite, coronel. O dinheiro é seu. Mas para que esconder? (REGO, 1997, p. 223 - 224).

 

 

Mas não havia riqueza e, contudo, Antônio Silvino achando que estava sendo enganado, começa a distribuir os bens do Santa Fé, o senhor do engenho fica imobilizado no chão, a mulher aos prantos. E, logo depois, quando Vitorino chega contestando Antônio Silvino, os cangaceiros o derrubam com uma coronhada de rifle: “Uma coronhada de rifle botou-o no chão, como um fardo” (REGO, 1997, p. 226, grifos nossos).

 

Por esses exemplos percebemos como a violência por parte dos jagunços é explicitada. A destruição do Santa Fé só é interrompida pela chegada do poderoso e respeitado Coronel José Paulino, dono do ainda próspero engenho Santa Rosa:

 

 

Mas quando ia mais adiantada a destruição das grandezas do Santa Fé, parou um cavaleiro na porta. Os cangaceiros pegaram os rifles. Era o coronel José Paulino, do Santa Rosa. O chefe chegou na porta.

- Boa noite, coronel.

- Boa noite, capitão. Soube que estava aqui no engenho do meu amigo Lula e vim até ca.

E olhando para o piano, os quadros, a desordem de tudo:

- Capitão, aqui estou para saber o que quer o senhor do Lula de Holanda.

E vendo d. Amélia aos soluços, e o velho estendido no marquesão:

- Quer dinheiro, capitão?

A figura do Coronel José Paulino encheu a sala de respeito.

- Coronel, este velho se negou ao meu pedido. Eu sabia que ele guardava muito ouro velho, dos antigos, e vim pedir com todo o jeito. Negou tudo.

- Capitão, me desculpe, mas esta história de ouro é conversa do povo. O meu vizinho não tem nada. Soube que o senhor estava aqui e aqui estou para receber as suas ordens. Se é dinheiro que quer, eu tenho pouco, mas posso servir  (REGO, 1997, p. 228, grifos nossos).

 

 

Vemos que há uma relação entre os cangaceiros e o coronel José Paulino e quando este oferece dinheiro, temos a revelação de que Antônio Silvino é apadrinhado pelo coronel.

 

É isso que o Capitão Vitorino afirma: “Vocês dão proteção a estes bandidos e é isto que eles fazem com os homens de bem” (REGO, 1997, p. 228, grifos nossos). 

 

 

A lei do poder patriarcal e a violência como práticas costumeiras

 

 Terceiro personagem importante da trama de Fogo Morto, Vitorino Carneiro da Cunha em sua incessante busca por justiça e liberdade, aparece ora como palhaço, ora como criança e, porque é exatamente uma personagem quixotesca, acaba revelando toda a corrupção e violência praticada pela polícia, coronéis ou pelos cangaceiros. Vitorino defende que as leis sejam iguais para todos, pobres e ricos e, no entanto, naquele contexto, isso parece ser um disparate.

 

Segundo Walnice Nogueira Galvão, o exercício privado e organizado da violência é ao longo da história brasileira, uma instituição e não uma exceção. A violência aparece como prática rotineira do comportamento humano em todos os níveis desde a dupla face do poder patriarcal até o código de honra do cangaço. Esse traço específico do meio rural não se adequa às normas de conduta do Direito. Por isso, Vitorino defensor da lei aparece como uma personagem cômica, inocente, pouco realista, enfim um Dom Quixote do sertão.

 

Além desse caráter costumeiro apontado por Oliveira Vianna, há também um padrão ético costumeiro no próprio comportamento dos indivíduos, segundo Galvão, o que determina os hábitos, usos, modos de viver, condutas em desconformidade como normas legais. Esse padrão costumeiro de conduta é caracterizado também por ser parte do regime autoritário de dominação hierarquizado do chefe ou senhor à população que não conhece qualquer forma de organização que defendesse seus interesses.

 

Por essa especificidade, podemos entender o ceticismo e a falta de esperança que o mestre José Amaro, já velho e doente, exprime ao receber a ordem do Coronel Lula para que abandone o engenho Santa Fé, propriedade em que o seleiro nasceu e viveu até a velhice:

 

 

Deixara os trabalhos e só fazia imaginar como iria se arranjar nesse mundo. A princípio pensou que fosse fácil abandonar aquela casa. Nunca sentira por aquele pedaço de terra o que agora estava sentindo. Viu que era duro abandonar aquela besteira que via todos os dias como coisas sem importância. O pé da pitombeira, as touceiras de bogaris, aqueles cardeiros de flores encarnadas, o chiqueiro dos porcos, a estrada coberta de cajazeiras, tudo teria que deixar, tudo estaria perdido para ele. Alípio lhe dera aquele conselho. Manuel de Úrsula lhe falara em direito. Direito de pobre (REGO, 1997, p. 181, grifos nossos).

 

 

Esse poder costumeiro entra em choque no romance quando o tenente Maurício prende violentamente o capitão Vitorino, parente dos senhores de engenho, “dos grandes da terra”. O Coronel José Paulino ao ver Vitorino passando amarrado argumenta:

 

 

- Então o que é isto, seu tenente? O que está pensando que é isso aqui?

- Coronel, este velho me insultou sem precisão. Tenho ordens do chefe de polícia para não tolerar intromissão de chefe político na perseguição aos cangaceiros.

-  Pois que vá perseguir os cangaceiros. O meu primo Vitorino é um homem que não faz mal a ninguém.

- Coronel, eu vou levá-lo para o Pilar. Lá o delegado que faça o que quiser.

- Tenente, este homem é um nosso parente.

- Eu já sei, doutor Juca, o coronel já me disse. Mas eu tenho que botar ele na cadeia do Pilar.

- Juca, vá com Vitorino. Isto é um absurdo.

Vitorino gritava:

- Não é preciso. Não quero proteção de ninguém (REGO, 1997, p. 199 -  200, grifos nossos).

 

 

Esse é o ponto: Vitorino crê no poder institucional da lei, uma lei justa, porque imparcial. E o que vemos no Sertão é a proteção, Vitorino, mesmo não querendo recebe proteção dos senhores de Engenho. Enquanto o mestre Amaro, como já vimos, não recebe mais proteção do Senhor de Engenho, torna-se protegido do cangaceiro Antônio Silvino:

 

 

- Mestre, em que está a questão com o coronel Lula? - perguntou um dos rapazes?

- Eu não tenho questão. O homem me botou para fora. E eu não saio. É só isto. Agora que me venha arrancar daqui. Ainda há força neste mundo que pode mais que uma vontade do senhor de engenho.

- Botou advogado, mestre?

- Não tenho posses para isto. Tenho o meu direito e quem tem direito não teme  (REGO, 1997, p. 200).

 

 

A comadre do Mestre Amaro, Adriana esposa de Vitorino, também crê na justiça do cangaceiro Antônio Silvino, como podemos verificar no excerto abaixo:

 

 

Apareceu a velha Adriana. Tinha sabido no Oiteiro da briga do marido.

- Ele está ferido, meu compadre?

- [...] Que miséria. Dar num homem como Vitorino! Tenho fé em Deus que o capitão Antônio Silvino me lava os peitos

 (REGO, 1997, p. 201).

 

 

Para podermos entender essa especificidade do poder patriarcal, reporto-me a análise de Oliveira Vianna que afirma que a plebe rural nunca conseguiu constituir um poder institucional que defendesse seus próprios direitos. Segundo Vianna, essa especificidade está intimamente ligada com o povoamento do interior do Brasil no período colonial. Basta afirmar que esse povoamento feito a partir de unidades econômicas, também se configurou em unidades de poder local forte.

 

Apreendendo o processo histórico no cerne do romance, podemos perceber que nele aparece um clássico elemento da formação brasileira: o poder econômico sobrepõe-se ao poder político e esta é a particularidade do poder de mando das oligarquias rurais.

 

Essas oligarquias foram resultado da aliança entre proprietários rurais, que conforme seus interesses formaram seus partidos políticos fazendo com que cada fazenda ou engenho significasse uma parcela de votos dos agregados, pois a dependência econômica destes implicava, necessariamente, em votar conforme os interesses do proprietário. E, assim, da aliança desses proprietários é que dependia o resultado das eleições. Percebemos o poder local dos oligarcas, no romance , no seguinte trecho:

 

 

Saíra um artigo no Norte com queixa contra o tenente. O capitão Vitorino Carneiro da Cunha era apontado como um cidadão pacato que levara uma surra da força volante [...] Toda esta perseguição só podia atribuir às suas atitudes políticas. Estava contra o governo [...] Ele e todo o seu eleitorado iriam às urnas para salvar a Paraíba dos oligarcas (REGO, 1997, p. 202, grifo do autor) .

 

 

E uma vez que o sertão está ordenado em práticas costumeiras. O banditismo, segundo Walnice Galvão, está no cerne da organização social, econômica e política, não constituindo uma exceção, mas uma necessidade histórica.

 

 

Opressão e abandono: a violência simbólica e cotidiana

 

Logo nas primeiras linhas de Fogo Morto temos traçado a figura do mestre José Amaro: “Bom dia, mestre Zé, - foi dizendo o pintor Laurentino a um velho, de aparência doentia, de olhos amarelos, de barba crescida” (REGO, 1997, p. 12, grifos nossos). Mestre Amaro é o homem pobre livre no limiar da grande propriedade, um dos personagens mais desprovidos de proteção depois dos ex-escravos que aparecem ao longo do romance. Tal como sua condição, Mestre Amaro vive à beira da estrada, onde tem a sua casa e oficina, sobrevivendo do ofício de seleiro.

 

A primeira coisa da qual reclama o artesão é a perda da nobreza da profissão, o que o inferioriza em relação aos ricos, fazendo aumentar sua revolta: “Estava trabalhando para camumbembes. Era o que mais lhe doía. O pai fizera sela para o imperador montar” (REGO, 1997, p. 17) . Pois, enquanto trabalhava para pobres, o pai havia feito sela para o imperador e os ricos estavam preferindo comprar selas prontas, como afirma o próprio seleiro ao pintor Laurentino: “Estou perdendo o gosto pelo ofício. Já se foi o tempo em que dava gosto trabalhar numa sela. Hoje estão comprando tudo feito” (REGO, 1997, p. 12).

 

Por ser artesão e não trabalhador do engenho, mestre José Amaro constantemente afirma ser independente: “Aqui nesta tenda só faço o que quero [...] É verdade que senhor de engenho nunca me botou canga. Vivo nesta casa como se fosse dono [...] Ninguém manda no mestre José Amaro. Aqui moro para mais de trinta anos” (REGO, 1997, p. 14, grifos nossos) .

 

Vemos aqui que essa ilusão da independência que o mestre ostensivamente arroga a todos com quem conversa provém da ambigüidade da sua condição de agregado. O mestre não é escravo mas também não é dono das terras onde mora e, portanto, está submetido aos mandos e desmandos  do coronel Lula de Holanda, que pode inclusive dispensá-lo a qualquer momento. Sobre essa condição afirma Walnice Nogueira Galvão: “...o morar de favor em terra alheia traz implícito o compromisso pessoal com o proprietário da terra, haja ou não contrato de trabalho e seja qual for a variante assumida pela condição comum - agregado, morador, parceiro, meeiro, camarada, vaqueiro, fábrica, etc.” (GALVAO, 1986, p. 38, grifos nossos). Esse contrato implícito é uma forma de opressão velada, que nessa chamada sociabilidade rústica é explicitada quando a parte frágil se rebela contra a inteira sujeição e submissão. Além disso, como já observamos, a contrapartida deste compromisso pessoal é a defesa da propriedade, a fidelidade eleitoral e o débito moral que o disponibiliza para outras causas conforme os interesses do dono da terra.

 

E é exatamente a liberdade de escolha que o Mestre Amaro arroga que faz explicitar a violência a qual está submetido pois, mesmo afirmando trabalhar para quem quisesse o mestre acabava sempre cedendo aos chamados do coronel Lula para os serviços de conserto do cabriolé. Mas quanto à liberdade de voto ele sustenta que não votaria no coronel José Paulino representante dos partido dos coronéis. Esta atitude, somada aos constantes conflitos com o negro Floripes, protegido do proprietário a quem deve favor, tem como fim a expulsão do mestre do engenho Santa Fé:

 

 

- Muito boa tarde, coronel Lula.

O velho baixou os olhos vidrados para cima procurando reconhecê-lo.

- Quem é que manda neste engenho, hein, mestre José Amaro ? De quem é esta terra, hein, mestre José Amaro ?

- O senhor sabe melhor do que eu, coronel [...]

- Hein, mestre José Amaro, eu mandei chamá-lo para saber de coisas que o senhor anda dizendo, hein ? [...]

- Coronel, o senhor não deve ir atrás das intrigas daquele negro. Eu sou homem de respeito .

- Hein, mestre José Amaro, o seu pai matou em Goiana, não é verdade, hein, mestre José Amaro ? Eu não quero assassino no meu engenho [...] Pode procurar outro engenho, mestre José Amaro (REGO, 1997, p. 109 - 110) .

 

O mestre só não abandona o engenho porque o cangaceiro Antonio Silvino, garantiu-lhe proteção. Então passa a depender dos cangaceiros que, por sua vez, exigem um tipo de troca de favores. Para o Mestre, entretanto, os cangaceiros precisavam dele:

 

 

O mestre José Amaro encontraria um engenho no Itambé, uma terra que o acolhesse, um povo que o amasse. Encontraria , não havia dúvida.

Mas o diabo era aquele recado do cego Torquato. Um pedido do capitão Antonio Silvino para ele [...] Sem dúvida todos do bando precisavam dele [...] O capitão precisava de um homem de confiança para lhe dar as notícias (REGO, 1997, p. 114 ) .

 

Portanto, seja sob tutela dos coronéis, seja sob a proteção dos cangaceiros, Mestre Amaro é um homem sem nada de seu, totalmente livre e, por isso mesmo, totalmente dependente num universo onde as relações de mando estão atreladas às relações de favor.

 

 

Universo familiar e violência cotidiana

 

O mestre José Amaro diz-se revoltado contra os ricos como o coronel José Paulino, dono do engenho Santa Rosa, que fora ríspido com ele: “Mestre José Amaro é pobre, é atrasado, é um lambe-sola, mas grito não leva” (REGO, 1997, p. 17) . Todavia em sua casa reproduz o decadente patriarcalismo existente na casa grande, fazendo exatamente aquilo que não tolerava que fizessem com ele. Com relação ao seu lar, o narrador afirma: “Ele queria mandar em tudo como mandava no couro que trabalhava, queria bater em tudo como batia naquela sola” (REGO, 1997, p. 16 ) . No romance, o temperamento do mestre, sua vida irrealizada e as mágoas que possuía ditavam o ritmo e a intensidade com que martelava o couro :

 

 

O mestre José Amaro sacudiu o ferro na sola úmida. Mais uma vez as rolinhas voaram com medo, mais uma vez o silêncio da terra se perturbava com seu martelo enraivecido. Voltava outra vez a sua mágoa latente: o filho que não viera, a filha que era uma manteiga derretida. Sinhá, sua mulher, era a culpada de tudo  (REGO, 1997, p. 17, grifos nossos) .

 

 

Nesse universo familiar estilhaçado, o mestre José Amaro só sente paz quando sai a noite para andar:

 

 

O seleiro estava possuído de paz, de terna tristeza; ia ver a lua, por cima das cajazeiras, banhando de leite as várzeas do coronel Lula de Holanda. Foi andando de estrada afora, queria estar só, viver só, sentir tudo só. A noite convidava-o para andar. Era o que nunca fazia. Vivia pegado naquele tamborete, como negro no tronco. E foi andando [...] Na lagoa, a saparia, enchia o mundo de um gemer sem fim. E os vaga-lumes rastejavam no chão com medo da lua. Tudo era tão bonito, tão diferente da sua casa. Quis andar para mais longe. E se deixasse a estrada  (REGO, 1997, p. 31) ?

 

 

Porém, a partir desse costume de sair à noite, o povo começa a temê-lo pois, para eles o seleiro estaria se transformando em lobisomem. Temos aqui o desdobramento de uma série de acontecimentos que irão engendrar o abandono do mestre José Amaro. E vemos que a amargura e revolta deste é a fonte de suas misérias e desgraças.

 

A sua filha Marta progressivamente enlouquece. O mestre Amaro tenta curá-la por meio de surras. Com isso sua esposa Sinhá começa temê-lo e acreditar na crença de que ele realmente estava se transformando em lobisomem, afastando-se dele até abandoná-lo de vez. Sua filha Marta, mulher, com mais de 30 anos, solteira, acaba indo parar num hospício do Recife. Mestre Amaro, oprimido dos senhores, é o pai agressivo e o marido temido:

 

 

Quis levantar-se para falar com Sinhá. Sabia que tudo aquilo que a filha tinha só se curava mesmo com surra [...]

A velha Sinhá saiu para fora gritando:

- Não mate a menina, Zeca, não mate a menina [...]

O marido agora andava para o seu lado, vinha para a porta da cozinha, com a sola na mão. Era um bicho, era o diabo que marchava para cima dela [...] Em poucos minutos viu-se uma infeliz, uma mulher sem coragem, sem força, um trapo. Teve vergonha de seu medo[...] Não pôde chegar-se para perto do marido. Aquele cheiro de sola, aquela inhaca dos princípios do casamento encheu a casa inteira. Um nojo terrível tomou conta dela. Era como se tivesse pegada a um defunto fedendo [...] (REGO, 1997, p. 93-95, grifos nossos).

 

 

O abandono do mestre é construído lentamente pelo enredo e alguns episódios já anunciam o fim trágico desta personagem: o desprezo da mulher, a loucura da filha e a fama de lobisomem, a expulsão do engenho. O termo “defunto fedendo”, utilizado pelo narrador para descrever o medo e a repulsa de Sinhá, preparam o leitor para o suicídio de mestre Amaro no final do livro.

 

Após essa análise é possível retomar a questão posta por Antonio Candido na obra A personagem no romance, quando ele diz que o maior responsável pela força e eficácia  de um romance advém da construção estrutural de três elementos: o enredo, a personagem e as idéias. Como vemos, em Fogo Morto o conjunto desses três elementos dão poder de convicção ao abandono, à solidão, à decadência do mestre José Amaro que é também a mesma do engenho nordestino representada aqui pelo engenho Santa Fé.

 

 

Considerações finais

 

A violência, seja ela implícita ou explícita, perpassa todas as três partes do romance Fogo Morto. Podemos perceber como configurava-se socialmente o poder patriarcal centralizador do poder econômico, político e jurídico. O romance apresenta as formas através das quais a lei, tal qual é redigida pelas cartas constitucionais, não era aplicada ao sertão. Isso explica  porque Vitorino, aos nossos olhos, aparece como um personagem ingênuo, cômico, infantil e indefeso, uma vez que ele luta por uma justiça imparcial e que é, no entanto, refrátaria a realidade deste meio rural canavieiro. Podemos perceber também, como a violência normatiza a conduta dos homens pobres e livres do agreste nordestino: entre coronéis e cangaceiros, o poder do mando, sem descartar o uso da força, é o que prevalece. 

 

 

Bibliografia

FACÓ, Rui. Cangaceiros e Fanáticos: gênese e lutas. 9 o. ed. Rio de Janeiro, Editora Bertrand Brasil, 1991.

GALVÃO, W. N. As Formas do Falso: um estudo sobre a ambigüidade no Grande Sertão: Veredas, 2 o. ed. , São Paulo,Perspectiva, 1986. 

REGO, José Lins do. Fogo Morto. São Paulo, Editora Klick, 1997

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